sábado, janeiro 14, 2006

Começar pelo fim

Dobrei já aquilo que se chama a idade do século. O mundo não tem para mim, hoje, passados oitenta e quatro anos, menos segredos do que quando o senhor general Craveiro Lopes foi apeado da Presidência. Há quem pense que a idade é uma vantagem. Seguramente não é. Com o tempo vamos ficando maduros e tranquilos; mas com a idade vamos apenas reparando nos defeitos dos outros e quase nunca nos nossos. Reparo que os meus sobrinhos espremem a pasta dentífrica pelo meio e não pela base. Dou-me conta das mudanças de estação quando os pinhais de Moledo mudam de cor. A velocidade das coisas não me interessa, há muito que me conformei com a sua passagem e a ideia, vulgar e triste, de que há coisas novas para experimentar.

Sou um conservador, um botânico e um velho. Até como botânico sou conservador, reservando sempre o mesmo espaço para as begónias – que me lembram Júlio Diniz e “Uma Família Inglesa” – e o mesmo enlevo para os hibiscos. A velha casa de Moledo, onde a família passa os domingos e, episodicamente, os finais de semana, não acolhe memórias de um século; alberga apenas a poeira de oitenta e quatro anos assinalados, religiosamente, em Dezembro de cada ano e anunciados à família como um avanço na conservação da espécie. Tenho uma biblioteca razoável, mantida sem esforço e sem ordem. Aprendi com o velho doutor Homem (meu pai), que a abundância de livros não deve fazer-nos pensar na sabedoria mas apenas na vaidade e no prazer. Não na alegria (que raramente se retira deles); antes, no prazer que se retira do silêncio, da contemplação e da pequena vaidade.

Aos oitenta e quatro anos devia interessar-me pelas doenças do meu corpo, já que pouco me
interessei pelas do meu país. Aliás, com o tempo e com a idade, simultaneamente, o meu país ficou reduzido ao Minho e ao velho Porto de que recordo amigos desaparecidos, ruas antigas, perfumes de antanho. Gosto de palavras antigas. A minha sobrinha Luísa, alimenta a minha imoderada vaidade literária, feita de clássicos, de romances baratos e de repetições. Também gosto de repetições. Gosto de lugares onde me sento sempre da mesma maneira, de urzes que mantêm a mesma cor, de livros que não mudaram de estante e de bandas de música que tocam marchas incompreensíveis e desafinadas. Hoje, sou um rural. As pessoas razoáveis do meu país, em vez de viverem e envelhecerem tranquilamente no campo, ficaram nas cidades, rodeados de médicos e de novidades como a televisão, a internet e as eleições.

O meu avô e o velho doutor Homem, meu pai, legaram-me uma ideia de felicidade doméstica que já não existe e que eu, o mais velho de seis irmãos e irmãs, devia saber explicar. Mas não sei, essa é a verdade. Era uma felicidade feita de repetições, de moderação e de pouco engenho, contentando-se com o facto de haver Inverno e de, mais tarde, poder haver Verão. A minha família atravessou os séculos e as convulsões adaptando-se ligeiramente aos factos consumados e tratando a História como um incómodo que era preciso suportar. Fomos miguelistas e mudámos de campo. Fomos indiferentes à República e achámos insuportável o doutor Salazar. A última das revoluções, em 1974, já não nos surpreendeu porque na altura tínhamos aprendido a falar no “curso da História” e no fim dos tempos. Houve uma altura em que me senti vagamente contrariado com o país. Não hoje. Sou apenas um velho homem do Minho, um pouco reaccionário, habituado ao mar de Moledo, à superfície das coisas, às memórias que não se podem mudar, como ter começado estas crónicas pelo fim. Pelos meus oitenta e quatro anos.

in Revista Notícias Sábado - 14 Janeiro 2006