sábado, janeiro 21, 2006

Um divórcio inesperado

Na família nunca se apreciaram muito as colecções de memórias. Depreendo que existam duas razões. Em primeiro lugar porque as nossas nem sempre merecem aplauso ou recordação (portámo-nos mal com Paiva Couceiro, a quem a família recomendou que se vestisse melhor e se deixasse de lérias). Em segundo lugar porque, depois de o infante D. Manuel ter abandonado as penedias da Ericeira enquanto em Lisboa se anunciava a República pelo telégrafo, a família aceitou tornar-se liberal. O senhor Dom Miguel, cujo retrato se conserva pendurado ao fundo de um corredor da velha casa de Ponte de Lima, daria saltos na tumba.

Quando se dobra o caminho que nos levou aos oitenta e quatro anos, aparece uma grande clareira na floresta. A ideia de “clareira na floresta” é excessiva e resulta de abundância de leituras, mas não vejo outra mais apropriada para falar das minhas próprias recordações, sobretudo agora que os pinhais de Moledo enfrentam o rigor do Inverno. Mudado há mais de vinte anos para esta casa, limito-me a viver entre recordações, almoços de domingo com a família que vem visitar este Matusalém minhoto, as pequenas histórias dos meus sobrinhos e as notícias que me chegam do mundo, servidas pelos jornais que Dona Elaine, governanta de Moledo, traz diariamente da papelaria ou do café da vila. Os meus irmãos, ao domingo, repousando (mas não totalmente) dos negócios que os prendem ao Porto, ao mundo da finança e às amizades que sobreviveram, têm pouco tempo para recordações. Apenas o segundo divórcio da minha sobrinha veio interromper a pacatez a que os Homem se têm dedicado sem pudor. Mesmo assim, não ligámos. Era o segundo divórcio.

Soubemos tardiamente que tinha casado segunda vez. Soube-o em São Miguel de Seide, na visita que anualmente me leva à Casa de Camilo, o velho bruxo, para olhar os mesmos objectos de sempre: o relógio de Pinheiro Alves, primeiro marido de Ana Plácido, a escadaria onde se ouviu o disparo do revólver com que Camilo se suicidou, as velhas árvores que o escritor amou. É à minha sobrinha que cabe transportar-me a essa peregrinação anual que acaba, invariavelmente, em Ponte de Lima, entre os freixos e o sol do Verão. “O tio sabe que me casei?” Não sabia, mas não foi “Doze Casamentos Felizes” o livro de Camilo que me veio à memória.

Antigamente, os casamentos eram preparados com antecedência e discutidos com minúcia. Observei sempre esse protocolo nos casamentos dos outros. Por vários motivos, nunca me casei – as “alegrias do matrimónio”, como são conhecidos os vários incidentes que depois decorrem, nunca me encontraram pelo caminho. A minha sobrinha acha graça a este comportamento imoral e diz-me que, imitando-a, devia passar a votar no Bloco de Esquerda. Tentei, em vão, explicar-lhe que o massacre das classes médias, o combate ao casamento e à bonomia familiar, é uma tentação antiga e velhaca de séculos. Ninguém como o velho Doutor Homem (meu pai) compreendeu essa banalidade, explicando ocasionalmente aos seus quatro filhos homens (as minhas irmãs eram poupadas às filosofias do antigo boémio) que a vida eram apenas dois dias. Todos o compreendemos, e eu menos do que os outros, como de costume. Aliás, tirando a velha Tia Benedita, que até ao fim acreditou que o espírito de Afonso Costa regressaria para expulsar os missionários franciscanos, perseguir as pessoas de bem e roubar o ouro de Santa Maria de Oliveira (em Guimarães), a família percebera que se tinha mudado, enfim, em liberal.
Isso é uma coisa, expliquei à minha sobrinha. Outra, diferente, é votar no Dr. Louçã. Ela não concorda. Foi para isto que foi educada na vida moderna.

in Revista Notícias Sábado - 21 Janeiro 2006