sábado, abril 01, 2006

Coisas leves

Uma das minhas irmãs (somos três irmãos e duas irmãs) perguntou-me por que razão eu não escrevia coisas mais leves sobre assuntos mais leves. A pergunta foi feita já depois de almoço, naquele ambiente de gratidão quase metafísica que os velhos ainda sabem apreciar depois do almoço dos domingos. Os Homem gostam dos almoços de domingo. Na verdade, apreciamos muito a má-língua, sugere a minha sobrinha Maria Luísa, que vem sozinha com os dois filhos ao fim da manhã e arranca sozinha com os dois filhos ao fim da tarde – o seu segundo divórcio não bastou para nos comover, comprovando a conhecida frieza dos Homem, que acaba por ser uma boa coisa: por um lado, a minha irmã não tem compaixão por um pobre velho vaidoso muito afeito a questões de estilo; por outro, não entoamos loas à moral. Ambas as coisas são verdadeiras.

A compaixão e comoção andam juntas, mas não entram muito pela porta do eremitério de Moledo. Já contei ao leitor o triste episódio dos monárquicos de 1911, que vieram a Ponte de Lima pedir fundos para as campanhas militares – e foram mal recebidos. Durante anos, depois de tomar conhecimento das conversações, alimentei em vão a esperança de que a História voltasse um pouco atrás para corrigir a frieza espectral da família, que imagino recolhida no casarão de granitos frios e indiferente à sorte das incursões que, em nome de Sua Majestade, iam sendo derrotadas em Vinhais e espezinhadas em Chaves às mãos do jovem Ribeiro de Carvalho. Em vão. Os vencidos da História vão perdendo o seu direito à posteridade e a eventuais correcções no destino. Reconheço que havia um certo heroísmo em Paiva Couceiro, à mistura com o ideal de aventura e de honra militar. Mas o destino estava traçado pelo optimismo da República, que trabalhava a favor do dr. Afonso Costa e dos demagogos da época. Eventuais arrependimentos (e foram muitos) chegaram tarde demais, como considerava profeticamente o velho doutor Homem (meu pai), que em tudo via um pretexto para se indignar contra o dr. Salazar.

Viu o leitor, espero, como se decidiu esta crónica: comecei por invocar a minha irmã, passei por cima da má-língua dos Homem, evocando o segundo divórcio da minha sobrinha, a fim de chegar ao dr. Salazar depois de lembrar o mau-feitio dos Homem (que por vezes se pode confundir com ingratidão diante da História). Esta é a conversa de um velho, no fim de contas: passa-se de um assunto a outro porque não há outro remédio, não há outro caminho. Uma memória lembra outra. Transformado numa instituição veneranda, anterior ao Titanic e à época das auto-estradas, limito-me hoje a construir pontes que unam todas as várias margens do meu delta particular. Como poderia eu escrever sobre coisas leves?

A verdade é que não conheço coisas mais leves do que estas. Recordar. Lembrar os livros antigos. As chegadas e partidas do meu avô, na velha estação de São Bento. A correspondência ordenada e meticulosamente classificada do velho Doutor Homem, meu pai. Uma paixão antiga. A questão não está nas coisas leves, mas na leveza com que se viveu uma vida.
A minha sobrinha, nem de propósito, ficou comovida com esta revelação de uma paixão antiga. Ela gosta de histórias impossíveis. Nesta idade, um velho pode contar o que aconteceu há quarenta ou cinquenta anos sem correr o risco de encontrar as personagens dos “Mistérios de Fafe”, onde Camilo contou amores impossíveis. Talvez na próxima semana me atreva a descer o pano sobre uma recordação desse género. “Coisas leves”, não é disso que todos gostamos, pelo menos de vez em quando?

in Revista Notícias Sábado - 1 Abril 2006