sábado, julho 15, 2006

De Eça, de quem somos filhos

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha arroubos de cos­mopolita. Isso acontecia quando lhe ocorria citar Eça de Queirós ou lembrar-se do mestre. "Quer a gente um ministro? Não há um ministro. Quer-se um economista? Não há um economista." Assim falava o conde de Gouvarinho sobre o reino. O retrato do País, pela pena de Eça, emprestava-nos uma aura de luxo que não tínhamos. Recomendo ao leitor que retome, um destes dias, as descrições do Ramalhete, que sempre me impressionaram pelo rigor poético com que Eça desenhou a decoração do velho palácio dos Maias, cheia de cretones, repes, quebra-luzes, mesas de jogo, poltronas, antecâmaras, escadas interiores, alcovas de banho, alabastros e porcelanas, Rubens imaginários. O retrato convinha ao romance, convinha aos Maias, convinha até ao País, pobretanas e deslocado – mas era literatura a mais.

Romântico do mais puro (ao contrário do que a escola ensinou aos meus sobrinhos), imagens de Versalhes em Lisboa, as descrições de 'Os Maias' foram-me sempre muito convenientes. Quando, no final de uma vida dedicada ao direito bancário, à preguiça, à leitura e a algumas partes inconfessáveis das minhas memórias, deci­di mudar-me para o eremitério de Moledo, calhou-me reler 'Os Maias'. Do casarão de Benfica aos salões da quinta de Santa Olávia, em Resende, ao Ramalhete e à casa da senhora condes­sa de Gouvarinho, havia bastantes indicações sobre decoração e mobiliário. Mas poucas se adequavam a uma casa com vida, correntes de ar, crianças, livros e tempo que passa. Junto das obras do autor de 'A Relíquia adormecera o livro de um padre aveirense – cujo nome me não ocorre agora, mas o livro existia - que se dedicara durante algum tempo a coligir notas sobre os "exageros de Eça".

Os argumentos sobre os "exageros de Eça" poderiam ter sido subscritos pelo inevitável conde de Gouvarinho. Durante algum tempo pensei que seria bom escre­ver-se a história de 'Os Maias' do ponto de vista das personagens secundárias e, sobretudo, das suas personagens maltratadas. Tenho uma certa ternura pelas personagens criticáveis e criticadas - casadas com mulheres infiéis, com problemas familiares, desgostos de moral, corrompidas pela política e pela má fama, de calvas luzidias, sem talento literário. Compreendo que, de algu­ma maneira, os exageros de Eça lhe foram necessários para que nós vivêssemos o seu tempo.

O velho doutor Homem, meu pai, não assistiu à derradeira ascensão da ignorância na nossa democracia, mas reconhece­ria que se tratava de um preço a pagar. Não estaria certamente na disposição de pagar ou de negociar esse preço, mas o mundo ("excepto a China, tudo passa", como reconheceria João da Ega) não apresente novidades nesse quadrante; é vulgar dizer-se que "os Dâmasos de Salcede" ou "os Gouvarinhos" ou os "Acácios" estão ainda vivos e ocupando o seu lugar à nossa volta. Com essa probabilidade, o mais interessante é que não saibamos reconhecer que eles têm "o seu lugar à nossa volta". Portugal e todos nós, somos, afinal, filhos de Eça. Sendo certo que o mundo não se repele nem se revolve em novidades, a galeria de personagens de Eça de Queirós é eterna porque ele escreveu sobre generalidades que são eternas: a grosseria, a falta de vida na sua vastíssima Lisboa, o enriquecimento das burguesias e a ascensão da ignorância.

Os Homem nunca se importunaram com nenhuma dessas coisas: nem com os retratos de Eça nem com a democracia, que arrasta consigo, à maneira de uma companhia inseparável, a ignorância e a incomodidade com o passado. Camilo falou do assunto em 'Eusébio Macário' e na 'Brasileira de Prazins' como um visionário que desenhou os contornos dessa malvada podri­dão. O verdadeiro mundo português da época era esse, mais do que o de Eça. Mais o de Júlio Dinis do que o de Eça. Eça era um romântico que escrevia com pinças e com a delicadeza de um artista no seu laboratório. Camilo, como eu aprenderia mais tarde, tarde de mais, era um dos últimos desesperados moder­nos da nossa literatura. Às vezes procuro nas estantes esses retratos portugueses da nossa vida. Acabo a resmungar, perdi­do entre lombadas velhas, queimadas pela luz e devoradas pela poeira.

in Revista Notícias Sábado – 15 Julho 2006