sábado, dezembro 02, 2006

Ouvindo rádio

O velho Doutor Homem, meu pai, ouvia rádio no seu escritório. Ele pertencia ao tempo em que havia silêncio, tal como eu pertenci ao tempo em que todas as fotografias de família eram, ainda, a preto e branco. Esse universo terminou há muito e apenas o refiro como uma espécie de nota de rodapé esquecida nos nossos hábitos. A rádio do Doutor Homem, meu pai, não tinha apenas música – mas era uma velharia saudável, cheia de palestras, gramática correcta e vozes treinadas a brilhar e a serem escutadas no meio do silêncio das salas de estar (as “saletas”). A hora dos folhetins radiofónicos chegaria para anunciar a telenovela dos nossos dias, como Camilo tinha previsto que aconteceria quando escreveu os seus “Doze Casamentos Felizes”, para não irmos mais longe (mas poderíamos).

Conservo esse derradeiro aparelho que serviu para acompanhar os noticiários da última revolução a que os Homem sobreviveram, em 1974: uma peça de mobiliário que ocupa um recanto do que na casa de Moledo se chama “a biblioteca”. No dia 25 de Abril desse ano, à noite, chamado por três quartos da família mais próxima para ver a televisão e assistir ao pronunciamento à pátria (a restante estava dividida entre um jantar inadiável em Melgaço para celebrar a temporada da lampreia e a apreensão causada pela saída dos militares à rua), o velho causídico arrastou-se pelo corredor, resmungando que estava a seguir as coisas pela rádio e que “bem conhecia o pantomineiro de monóculo”. Daí a pouco, satisfeito com o facto de as suas previsões coincidirem com as premonições gerais da pequena multidão reunida nos sofás e no chão da sala (ou seja, de que as coisas podiam correr bem se, como todos sabiam que ia acontecer, não fossem correm como correram), regressou ao aparelho de rádio, lamentando que tivessem cancelado um dos seus programas. Em jeito de despedida, ainda avisou: no fim de contas, “o pantomineiro de monóculo ainda era o melhor de todos”.

O meu pai morreu oito meses depois da revolução, sobrevivendo-lhe com decência e mantendo uma circunspecção inesperada em relação aos acontecimentos, evitando fazer comparações com tragédias ou epifanias. Nessa altura, “o pantomineiro de monóculo” já tinha sido substituído por novos pantomineiros. Nove anos depois, numa homenagem à sua maneira de passar os serões, trouxe para Moledo o aparelho de rádio que, valha a verdade, raramente foi usado daí em diante. Era uma velharia que viria a ser substituída por “uma aparelhagem” e, depois, por um conjunto sofisticado de máquinas que julgo produzirem som a partir de discos compactos, e que os meus sobrinhos instalaram depois de um Natal cheio de novíssimas tecnologias.

Com o passar dos anos, o meu aparelho de rádio preferido passou a ser a pequena caixa de plástico que estacionou numa prateleira da casa de banho e que me informa, todas as manhãs, acerca do trânsito em Lisboa e no Porto, da meteorologia para lá dos pinhais de Vila Praia de Âncora e das minudências da política.

Frequentemente, as pessoas interrogam-se sobre como puderam sobreviver sem rádio, como os meus sobrinhos se preocupam ao tomar conhecimento do insólito facto de não ter havido televisão na infância dos seus pais (os jornais são o que no resta de vício conhecido pelos anais da história). Nesse conjunto de espantos, certamente sinceros, há ainda almas que tremem de pavor ao descobrirem que os telemóveis são invenções recentes.

Por mim, tenho resistido à exigência de possuir um telemóvel no bolso. A idade não mo aconselha, vou dizendo. Nos bolsos, uso apenas um lenço, o relógio que pertenceu ao meu avô (que o recebeu de um inglês do Douro a quem administrava as vinhas) e a pequena caixa que contém a dose diária dos comprimidos que cuidam das pobres coronárias. A minha sobrinha Maria Luísa, que tem dois telemóveis, tentou informar-me das vantagens de comprar um; parece que a principal delas é poder falar com quem queremos, onde quisermos, além de podermos ser contactados em qualquer lugar, coisa que não me seduz muito. Bem vistas as coisas, o único estranho que me contacta sempre à mesma hora é um senhor da rádio que, logo de manhã, me esclarece que chove em Lisboa ou anuncia que vai trovejar no Porto ou nas Beiras. Aguardo pacientemente que me informe sobre a queda das folhas da meia dúzia de plátanos ao fundo da rua, ou sobre a hora a que chega o correio ao portão de casa. Ele mantém-se renitente. Teimamos, cada um por seu lado. É isto a vida.

in Revista Notícias Sábado – 2 Dezembro 2006