sábado, fevereiro 10, 2007

Recordações como a flor da japoneira

Quando o século entrou na era industrial, o meu avô Alfredo estabeleceu que a maior obra de engenharia do seu tempo – e que garantiria todos os recordes até ao tempo dos seus netos – continuaria a ser a Linha do Douro, que ligaria o centro do Porto às escarpas portuguesas de Barca d’Alva e às encostas de La Fuente de San Esteban.

Periodicamente partia para o vale do Douro carregado de pastas com “a escrita”, e regressava uns dias depois munido de cestos de fruta e de perdizes. Dizia-se, por graça, que da estação de São Bento, no Porto, à Quinta da Barroca, em Barca d’Alva, o avô Alfredo podia pernoitar na maior parte das quintas do vale desde que houvesse apeadeiro.

A sua vida de administrador de propriedades, em vez de limitá-lo às paredes de um escritório e às prateleiras de letras, livranças e abonos, pô-lo em contacto com o mundo e obrigou-o a aprender inglês na categoria de autodidacta, o que lhe permitiu folhear o “Telegraph” e tentar levar os descendentes a acreditar na suposta superioridade da cultura inglesa. Havia uma distância fatal entre os negociantes ingleses e irlandeses do Porto e o manuseamento dos textos do Doutor Johnson, mas a ligação, se não existia, acabou por fazer-se devido à teimosia do meu avô. O velho Doutor Homem, meu pai, visitou Londres várias vezes e permaneceu-lhe fiel como a “cidade do espírito”, por contraste com a pátria, onde ele via o espantalho napoleónico a modelar a administração do Estado e as misérias da francofonia a modelar a cabeça dos intelectuais.

De alguma maneira, o velho Doutor Homem, meu pai, incorporou todos os defeitos das burguesias e do racionalismo do Porto, moldado pela penumbra do céu e pela chuva que caía nas suas ruas de granito escuro. A sua vida intelectual era um luxo permitido pela família; a moeda de troca eram viagens e temporadas de preguiça. As viagens levavam-nos a hotéis e cidades com museus, lojas e restaurantes, em Espanha, França e – por duas vezes – em Inglaterra; a preguiça depositava-nos em Ponte de Lima para um a dois meses de Verão, onde as tardes eram invadidas pelos seus discos e pela desarrumação na biblioteca do velho casarão miguelista – onde se misturavam, nos sofás e nos cadeirões, jornais da época e livros que convidavam à sesta. Se me contagiasse, algum dia, a tentação (cada vez mais frequente nos portugueses) de escrever um romance, eu teria nos anos de ouro de Ponte de Lima um cenário atraente e luminoso.

A vida foi-me fácil nesses anos; poupado às atribulações do casamento (mas também ao seu conforto) e da economia familiar, uma segunda adolescência prolongou-se até aos meus trinta anos, e as minhas preocupações essenciais eram, no fundo, a epistolografia e o guarda-roupa. O temperamento ajudava. Eu era preguiçoso. Aprendi o essencial – e o essencial era um certo conformismo e a vontade de aproveitar a felicidade do tempo. Coleccionei, portanto, recordações que hoje uso como a flor da japoneira numa lapela fora de moda.

Quando pela derradeira vez viajei com o meu avô até Barca d’Alva, ele já não era administrador de quintas nem se correspondia com os seus amigos ingleses. Aquele tempo tinha acabado. Lembro-me que olhou melancolicamente (o que nele era raro, como em todos os Homem, que desde cedo era educados para não se levarem a sério) para os túneis e pontes de ferro por onde o comboio atravessava os afluentes do Douro, e lembrou “a maior obra de engenharia do seu tempo”. Mesmo sabendo que se tratava de pura ilusão, considerámos ambos que Barca d’Alva, as quintas do Douro, Ponte de Lima com os seus freixos escuros, o velho Porto, o Minho pitoresco, Moledo e o seu mar friorento constituíam os pilares de uma geografia onde tínhamos crescido e depositado esperanças confortáveis. Esse mundo também acabou, com o tempo.

Penso nisso porque, com a Primavera que há-de chegar, abriremos a casa de Ponte de Lima para arejar os corredores e as salas de sobrado de madeira. Os meus sobrinhos consideram esse ritual (antes da Pascoela) uma obrigação moral. No fundo, acho que têm pena da solidão do senhor Dom Miguel, cujo rosto triste e perturbado naquele retrato ao fundo do corredor do piso térreo lembra que os derrotados também têm direito à vida. Foi o que nos salvou. De contrário, seríamos muito menos interessantes.

in Revista Notícias Sábado – 10 Fevereiro 2007