sábado, abril 28, 2007

As lágrimas de outrora

Cartas chegam, dos leitores, a que é preciso dar resposta. Há muitos anos que me contento em ser um cidadão de Moledo, onde vivo há cerca de vinte anos; da minha vida não há muito a contar senão o que me apetece contar – esse é o compromisso com as minhas memórias, que atravessam um século de coisas perdidas, de personagens obsoletos, de livros perdidos ou apenas cobertos de pó, e de fantasias sobre acontecimentos de que poucos se lembram. Para isso servem as memórias; para que nos lembremos. Felizmente, a memória é selectiva, o que representa uma vantagem sobre os arquivos em geral, onde tudo se amontoa e tudo se guarda.

A verdade é que esqueci muito do que se passou na minha vida – e por culpa própria, embora com vantagem pessoal. Afastei muitos momentos de infelicidade e quase nunca lembro as lágrimas de outrora. Quando eu era jovem chorava-se mais, chorava-se abundantemente na literatura, simulavam-se lágrimas reais no cinema (inclusive no português), e havia também lágrimas muito mais solitárias. Houve um tempo, depois de ter chegado à idade em que o pudor se misturava com a decência (para deixar de ser vergonha apenas), em que as lágrimas eram apenas um sinal de tristeza, de melancolia e, até, de sofrimento. Mas tanto o sofrimento como a tristeza passaram a ser um espectáculo oferecido em público, para uma audiência de espectadores convertidos à sensibilidade do choroso. Ora, as lágrimas são mais do que um sinal; elas são o fenómeno em si. Durante anos, assisti, não sem alguma indignação, à exigência de que os homens – seres graníticos ou, pelo menos, venais – chorassem com abundância para provar a sua suposta humanidade. Minha mãe, Dona Ester, não concordava. Ela achava que as lágrimas eram parágrafos num romance popular, destinado a alimentar almas que não deixavam sombra.

Educando-nos nesse ambiente de rigor em que o espírito devia ser tratado num ginásio, entre espaldares e exercícios regulares, Dona Ester não dava muita importância ao assunto mas sempre ia lembrando que esses luxos do sentimento deviam ser praticados com alguma cerimónia e bastante parcimónia. Quase toda a família, aliás, antes e depois de Dona Ester, foi igualmente educada nesse ambiente anti-romântico que cultivava mais a ironia do que a contemplação. A ideia de que “um homem não chora” era, evidentemente, absurda – mas a “popularização das lágrimas” conduziria a uma enfermidade do carácter que tornaria os seres humanos incapazes de cumprir tarefas, de prosseguir pelo destino fora, de encarar adversidades e de educar as novas gerações sem apelar ao pequeno e frágil sentimentalismo.

O velho Doutor Homem, meu pai, por seu lado, achava que em tudo havia um motivo – e a explicação para o excesso de lágrimas na vida real (e diminuição na literatura, que secou bravamente) bem como para o caudal de manifestações pueris de “sensibilidade” era a “falta de ocupação” bem como a incapacidade de as pessoas normais encolherem os ombros. O causídico ordenava o mundo com uma simplicidade bastante agastada, reconheço, e essa explicação teria sido catastrófica se alguma vez ele se apresentasse ao eleitorado, o que seria um choque profundo, próximo da hecatombe.

As pessoas que não têm ocupação têm mais queda para o sentimentalismo – ou para a indiferença pura e simples. Ambas as coisas são faces da mesma doença, que é a tendência para o exagero e para a contemplação do abismo.

Recolhido na sua biblioteca, o velho Doutor Homem, meu pai, teve certamente instantes de sofrimento, de renúncia, de solidão e de tristeza. Mas eram momentos profundos, magnânimos e silenciosos, afastados do espectáculo do sentimentalismo. Regressava desses períodos com a disposição de sempre, sem esconder a penumbra que pairava, mas sem exagerar nos seus contornos e, sobretudo, sem fazer dela depender o resto da humanidade. Conservador como era, acreditava que o mundo não tinha apenas uma explicação, o que o protegeu do racionalismo e o defendeu de apreciar o doutor Salazar para além do imprescindível durante essa meia década fatal. Ele achava que, às escondidas, o ditador chorava como uma criança. Com pena de si próprio.

in Revista Notícias Sábado – 28 Abril 2007