sábado, maio 26, 2007

Emigrados de Ponte de Lima

Ainda não começou a temporada de praia e já vieram as chuvas. A meteorologia anda inconsolável e perdeu o rumo. Dona Elaine, de qualquer modo, entrou naquele período que ela designa de "planeamento geral". A governanta de Moledo ouviu falar de "planeamento geral" na televisão e atribui à expressão um significado miraculoso e salvador por antecipa­ção. Basta fazer um "planeamento geral" e as coisas correrão melhor, a meteorologia regressará à sua modorra e o correio chegará a horas.

Longe de mim, que pertenço ao século passado – e talvez mesmo ao anterior – desmentir essa evidência que, em Maio e nas primeiras semanas de Junho, traz a filha de emigrantes minhotos no Brasil entusiasmada com o Verão e com a ocupa­ção de todos os quartos do eremitério de Moledo. Há uma longa série de preparativos a enumerar, o que atrasou consideravelmente as tarefas mais imediatas. Desde logo, as escalas. Há quem queira a segunda quinzena de Julho e quem preveja um Verão quente demais – e reserve os primeiros dias de Setembro, quando os pinhais amanhecem com a amena neblina do Minho de outrora. Há quem não dispense uma semana de Agosto mas deseja rumar a outro hemisfério para cumprir o calendário das migrações sazonais.

As migrações sazonais, justamente, interessavam muito o velho doutor Homem, meu pai, que achava o período de férias encantador e muito próximo do sublime – se o passasse em Ponte de Lima, longe dos acontecimentos, próximo dos netos e de uma velha colecção de discos que ouvia sem cessar quando chegava a hora da sesta. Durante a nossa adolescência de rapazes e raparigas, a família partiu por várias vezes na direcção da Grande Europa, ocupando quartos de hotel e visitan­do cidades. A Grande Europa, na altura, só começava vinte quilómetros depois de Hendaye (quando já não se pressentia Espanha no horizonte) e nas proximidades de Biarritz. O grande problema de Biarritz é que a "estância", como nessa altura se dizia no Porto, estava cheia de outros portuenses que nutriam pela Península o mesmo desin­teresse e até desprezo. A família rumou então para outras paragens, desejosa de civilização, de História e de línguas estran­geiras, coisa que não encontrava – com esse regime de abundância – dentro das nossas fronteiras.

Regressávamos desse período de quinze dias de férias com maneiras à mesa, uma mala de pequenas recordações (como a caneta Parker com que escrevo estas crónicas semanais) e um ligeiro cansaço. E, então, começava a emigração fatal para Ponte de Lima, de onde a família jurava que ninguém conseguia retirá-la até que terminasse Agosto e viessem as primeiras neblinas de Setembro. Era sempre mentira, mas a maior parte de nós julgava-se verdadeiramente emigrada em Ponte de Lima, no casarão que ainda hoje conserva algumas memórias e pudores dos Homem, mesmo depois de a tia Benedita ter declarado, com alguma irritação, que não estava para permitir que um bando de ateus, candidatos a pedreiros-livres e apóstatas fosse para o Velho Minho discutir – à mesa, como de costume - Évora Monte, autores devassos que tinham contemporizado com o adultério (ela guardava um pequeno rancor a Camilo) e até futebol, uma novidade da época. A tia Benedita referia-se a nós, e ela sabia que os pas­seios por Paris, Nice ou Roma não eram um bom prenúncio para a moralidade daqueles dias. Ela não viu os retratos de Mary Quant nem assistiu ao descalabro das classes médias, mas, como amostra, aquele bando era suficiente.

Moledo no Verão tem um certo ar da Ponte de Lima de então, com a subtil diferença de o iodo não constituir um argumento de força, hoje em dia. Como já expliquei ao leitor, em outras ocasiões, o iodo é um tempero romântico e médico para justi­ficar a permanência nos areais diante de Santa Tecla e da ínsua. No entanto, na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa explicou aos filhos que vinha aí um grande Verão cheio de iodo. Limitei-me a confirmar, piscando-lhe o olho. A mulher de trinta anos consegue tudo.

in Revista Notícias Sábado – 26 Maio 2007

sábado, maio 19, 2007

O tio Henrique e o oboé

Na família raramente se apreciava, creio que por preguiça, o radicalismo da Tia Benedita. Havia, naquela disposição reaccionária, comprometida com os terços, as novenas, o temor de Deus, e o desprezo pelos republicanos, algum sentido de humor para quem assistia ao espectáculo. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que havia alguma sorte pelo facto de a família contar com poucos militares na sua árvore genealógica; ele temia que, no passado, alguém pudesse ter incarnado o espírito beligerante da matriarca.

Os únicos militares da família, tirando os voluntários que participaram nas guerras civis, era inofensivos: o tio Henrique de Sousa Homem era oficial do exército mas limitou-se ao ramo da engenharia, tendo desenhado algumas pontes e estradas que estão recenseadas no álbum das pequenas glórias familiares, discretas e bem guardadas; um primo de Ponte de Lima, que prestava serviço na Marinha, passou à reserva depois da Noite Sangrenta, por não querer ver o seu nome manchado por um bando de assassinos que, por motivos ainda hoje obscuros, espalhou a morte na Lisboa republicana da época. O meu avô, que tinha privado com António Granjo (um dos supliciados) quando o político passava alguns dias no Porto, a caminho de Trás-os-Montes, achou o gesto muito decente embora inútil – e até complicado, uma vez que foi preciso arranjar-lhe ocupação.

O tio Henrique era um homem medianamente culto; escreveu um ensaio sobre aspectos da arquitectura militar portuense, era um numismata, acreditava nas imensas qualidades gerais da homeopatia, sabia grego e música – e teve a fantástica ideia (de que desistiu, para felicidade geral) de compor uma obra sinfónica para exaltar não sei que virtudes do patriotismo.

Naquele tempo em que não havia televisão e em que raramente se ouvia rádio, era necessário preencher o silêncio. Além disso, saber música, pintar, escrever, interessar-se por uma ciência ou por qualquer conhecimento obtuso e inútil, fazia parte da condição de se ser um cavalheiro. Ao contrário de hoje, não se era um cavalheiro por se parecer um cavalheiro ou por se assemelhar a um, mas porque se usavam os privilégios de nascimento, de educação ou do destino (e até do esforço, do trabalho e do mérito) para melhorar a vida dos mais próximos. Nos “mais próximos” começava a vida em sociedade.

Os cavalheiros da época mandavam construir fontanários e davam dinheiro para escolas, além de se interessarem pelas coisas da sua terra. Durante muito tempo ridicularizou-se esse hábito de oferecer fontanários às aldeias mais remotas, o que se deve à ignorância dos modernos – num mundo onde a água canalizada era um luxo, o fontanário constituía um bem público inestimável e um objecto de orgulho diante da penúria rural, tal como as escolas construídas pelos beneméritos que não esqueciam as dificuldades de antanho. Simples brasileiros de torna-viagem, além de provincianos que se tornaram industriais ou apenas homens ricos do Minho, deixaram alguns desses testemunhos de compreenderem que tinham de agradecer aos “mais próximos” a ventura do seu destino. A cultura – uma biblioteca, uma escola, um fontanário, uma banda de música – era um luxo a que poderiam dedicar-se depois de uma vida de sacrifício ou de enriquecimento. Ser rico tinha, pois, um custo que não devia malbaratar-se ou desvalorizar-se.

A Tia Benedita desconfiava dessa bondade de alguns ricos de província. Ela acreditava, como o seu avô e o seu pai, que essa generosidade se limitava a pagar o baronato (que já não existia) ou o favor do regime. O velho Doutor Homem, meu pai, compreendia a dúvida mas acreditava numa certa – e muito limitada – bondade da espécie humana. Ao contrário do dr. Salazar, que decidiu que o destino de Portugal era ser pobre, humilde e melancólico, ele achava que o luxo da cultura era uma afronta à mediocridade e à claustrofobia. Para convencer o tio Henrique a desistir da sua obra sinfónica, lembrou-lhe o dever de contribuir para que os seus conterrâneos aprendessem música – talvez depois lhe compusessem uma serenata. Os termos não são estes mas serviram para o essencial: o coronel da arma de engenharia numa mais tocou oboé.

in Revista Notícias Sábado – 19 Maio 2007

sábado, maio 12, 2007

Esperar pouco da vida

Esperar pouco da vida. Este foi um dos lemas fundamentais do velho Doutor Homem, meu pai. Não precisava de estar afixado nas paredes da casa de família, porque ele o vivia naturalmente como uma condição do seu modo de ser.

Por esta altura do ano, em 1945, chegavam ao Porto – ao Porto burguês, ex-romântico, pacífico e familiar – as primeiras notícias da vitória quase definitiva dos Aliados no campo de batalha. Durante semanas, o velho Doutor Homem, meu pai, esperou que o regime recuperasse o bom-senso para que terminasse o modelo do paletó presidencial, inspirado naquilo que em casa – às escondidas – se dizia ser a Saville Road de Santa Comba Dão, uma espécie de alfaiataria nacional. Infelizmente, os jornais noticiaram que o país estava de luto durante três dias em honra do facínora alemão, o golpe fatal que confirmaria todo o cepticismo da família – mas o meu pai esperava pouco da vida. Ao recordar episódios soltos e ao acaso de entre as recordações familiares, encontro sempre exemplos dessa divisa que, com os tempos, se tornou uma espécie de dogma.

A minha sobrinha admirou sempre esta história de surda indignação do seu avô, embora ache obtuso que o herdeiro da Velha Ordem, o contra-revolucionário e guardião da tradição miguelista da família, se tenha tão cedo desentendido com o regime de 1926. A razão, como em tempos expliquei, tinha a ver com o desprezo que o velho Doutor Homem, meu pai, nutria pela censura, pela figura do doutor Salazar e pelo provincianismo em geral. Nunca se deixou impressionar pelo messianismo e notava no lente de Coimbra um desprezo geral pela espécie humana e seus pecados. O que o desgostava nessa “virtude do regime”, identificada no rosto do presidente do Conselho, era a sua intenção de impô-la a todos os portugueses, o que ele entendia ser uma armadilha – privado da turbulência e do espírito de aventura, o País adormeceria tristemente sob as latadas, envergonhado e sorumbático. Porém, ao contrário do espírito das gerações modernas e do entusiasmo contemporâneo da minha sobrinha, ele sabia que as revoluções do século XX, longe de serem feitas em nome da liberdade, apenas contribuíram para aumentar as privações da liberdade, substituindo tiranias por tiranias e erguendo arame farpado onde antes havia campo aberto. E também sabia que a privação da liberdade em nome da garantia do pão era um exercício de chantagem que aprisiona os que lhe cedem.

Cansavam-no bastante os virtuosos, os que tinham remédios para a pátria e os pálidos de feitio. Esse seu receio dos “Eusebiozinhos” (em recordação do Eça mais paródico, o de “Os Maias”) acentuou o seu lado céptico, longe de morigerar a ironia ou a sua permanente desconfiança. Triste com o País, recusava-se a falar com ele. Achava-o pequeno, medíocre e, ao mesmo tempo, o seu único País. Até ao fim da vida, manteve longe de si os virtuosos e manteve-se a si mesmo afastado da ribalta. Dedicado à família na proporção inversa da sua moderada misantropia, ensinou-me quase tudo: o Direito, que pratiquei sob a sua protecção; a literatura, que conheci na sua biblioteca; a contemplação do mundo, que aprendi em longos passeios pelas clareiras do Minho; o prazer da música, que conheci nos preguiçosos verões de Ponte de Lima, naquele casarão cuja alma pertencia ao Antigo Regime; a esperar pouco da vida, súmula de todas as máximas possíveis, resumo da uma existência consagrada a não incomodar os outros com as nossas verdades ou as nossas crenças.

Com esta Primavera de Moledo ocupada em sobreviver às indecisões do clima, recordo a sua figura tranquila. Botânico amador que sou, não lhe devo o amor às árvores e às plantas (ele mandava, às escondidas, arrancar os gladíolos, que em determinada altura eram a flor da moda); trata-se de descoberta minha. Os gerânios da temporada advertem-me sobre a fragilidade das coisas; de todas elas, penso na felicidade ou na alegria. Só o tempo que passou me parece seguro.

in Revista Notícias Sábado – 12 Maio 2007

sábado, maio 05, 2007

As novas gerações

Parece que, em 1822, o cardeal-patriarca de Lisboa foi enviado para o desterro por se ter recusado a jurar a constitui­ção, que achava uma obra do anti-Cristo. Escuso de lembrar como D. Miguel, em Maio de 1823, acantonado em Vila Franca de Xira, resolveu proclamar o fim do novo regime. As grandes intenções são sempre tristes quando, ao fim de dois séculos, verificamos que levaram ao trágico cami­nho da derrota.

A tia Benedita foi criada pelo seu pai, nosso trisavô, no escân­dalo dessa derrota que a família não esqueceu, preferindo – em vez disso – ignorar o nome de Évora Monte. A sua vene­ração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava "o Príncipe", era um testemunho que teria de passar às novas gerações; e, inadvertida e surpreendentemente, eu fazia parte das "novas gerações". Eu era "as novas gerações" a quem depois caberia explicar os méritos da vilafrancada e do levantamento contra a Carta expedida do Brasil por D. Pedro, que abdicava em favor da princesa do Grão-Pará, sua filha. A história expli­ca, por linhas obscuras, como D. Pedro seria deposto no Brasil e regressara aos areais da pátria para que, mais tarde, Herculano pudesse chamar "desconchavos, torpezas, inépcias e incoerências" ao que se seguiu. Tão boa obra foi feita que Eça teria pedido, mais tarde, "uma tirania" que equilibras­se as coisas. Remédio tardio e inadequado. Durante estes anos, não fui (eu, "as novas gerações") capaz de explicar o enredo da história. Ai dos vencidos e do forçado pudor de ter calhado pertencer ao seu reino.

Seja como for, a família tem conservado o retrato do senhor D. Miguel entre as suas relíquias, e de vez em quando (por desfastio e irrespon­sabilidade) limita-se a comparar o brio oratório de José Acúrcio das Neves com o repentismo de Mouzinho da Silveira, para que, na disputa, possa atri­buir alguma vantagem aos seus. Trazemos nos genes, pois, a inscrição dos derrotados, o que nos ensinou os hábitos da discrição, da benevolência e da ironia. Destes valores, o velho doutor Homem, meu pai, aproveitou o último com vantagem sua e – na época – cansaço da tia Benedita, que não aprovava o método. A luta surda entre aquelas duas almas marcou a história dos Homem do últi­mo século; nenhum deles foi vencedor abso­luto. A seriedade da tia Benedita, com algum ressentimento à mistura, nunca conseguiu ultrapassar em popularidade o humor e a ironia do meu pai, cujos sarcasmos, por seu lado, nunca conseguiram esconder totalmente uma certa amargura.

Tal como a personagem de 'O Leopardo', de Lampedusa, o velho doutor Homem assistiu à ruína do seu mundo sem ruir com ele. Simplesmente, enquanto a maioria dos leitores de 'O Leopardo' critica a hipocrisia do príncipe, eu vejo nela alguma virtude.

Tentei explicar esta ideia tortuosa à minha sobrinha Maria Luísa. Com a idade, as "novas gerações" vão ficando mais interessantes, livrando-se das enfermidades da juventude. 'O Leopardo' foi uma das suas leituras e, para ela, o príncipe – representando "o velho mundo" – assemelhava-se um tanto aos heróis da máfia que apareceram no cinema como figuras românticas que afrontam o trono, o altar e os seus exércitos, como se fossem herdeiros do Robin dos Bosques. Educada pela história oficial, que trata os derrotados com dureza e obs­tinação, a minha sobrinha resiste ainda à ideia de que o mundo não está dividido em heróis e facínoras. O século XIX é para ela uma incógnita maior do que a revolução de 1974. O velho doutor Homem, meu pai, é para ela uma lembrança vaga a que o tempo e a idade emprestam agora mais graça e fascínio. Entrando na biblioteca, observando as lombadas dos livros, imagino que se interrogue como pôde aquele homem culto, irónico, céptico e mordaz (de que ela conheceu vaga­mente a figura) ser um herdeiro da velha ordem e não um revo­lucionário que combatesse as classes médias, a família e as instituições.

Primeiro, respondo que as coisas são como são, o que não a satisfaz. Depois, lembro-lhe de que Rousseau, que é considerado um grande pedagogo e um pensador revo­lucionário, abandonou os seus filhos e maltratava a sua pobre mulher. É um argumento descabido, mas diz muito sobre como as coisas são como são.

in Revista Notícias Sábado – 5 Maio 2007