sábado, julho 28, 2007

Causar impressão

Gosto do ar que os estrangeiros fazem quando lhes expli­camos os hábitos fundamentais da pátria. Sobretudo quando arregalam muito os olhos até ficarem incolores, esforçando-se por mostrar um agrado que a surpresa não deixa à solta. Foi isso que vi na namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, que, como já expliquei, passou a maior parte da sua vida na ilha de Ameland, parece-me que um paraíso da Frísia. É a sua ter­ceira visita a Portugal mas a primeira realmente "familiar" e até agora ninguém se ergueu da tumba dos Homem para relem­brar a morte de um tio durante as guerras do Pernambuco (onde ele foi escrivão e secretário do governo em Olinda), quando os Oranje e os Nassau, vindos da Haia e de Roterdão, tomaram aquela parte do velho império. Parece-me que é justo não chamar o passado para estas circunstâncias; nas guerras morre-se com uma frequência muito semelhante àquela com que se mata, e a habilidade é estar no lado mais afortunado dos campos de batalha.

Os Homem raramente estiveram nesse lado; fomos vencidos em muitas guerras, o que contribuiu para que ganhássemos juízo bastante no último século. Nos anos distantes em que a tia Benedita se esforçava por manter a vetusta dignidade dos Homem de antanho, calhava relembrar os primos que combateram nas companhias de Dragões ao lado do general MacDonnelI e sob a bandeira do Senhor Dom Miguel, ou os antepassados que deixaram o nome e algum sangue pelos valados da Pátria.

O meu pai e os seus irmãos já tinham aprendido a encolher os ombros e limitavam-se a discutir pormenores e minudências, que eram bons para alimentar a sua erudição e as digestões mais exigen­tes. Depois das guerras, depois do setembrismo e da Maria da Fonte, depois do constitucionalismo e da República, mesmo durante o salazarismo, ou depois dele, a família portou-se bem: manteve os velhos retratos no seu lugar (mesmo os mais comprometedores), porque tinha a noção da lealdade e da honra, mas seguiu em frente sem ressentimentos, acon­selhada pela intuição mais do que pela moral.

Só assim se explica a normalidade com que Isabelle, "a pequena holandesa" (como é tra­tada à mesa pela informalidade de dona Elaine, a governanta de Moledo), foi aceite paredes dentro sem ter de exibir certidão de casamento. Isso foi uma surpresa, não para nós, mas para ela, que julgou que uma velha família de um pobre e velho país como o nosso teria de viver pela cartilha de outro século.

O meu sobrinho Pedro contou-lhe, com o sentido das propor­ções de um guia de museu que enumera curiosidades que nunca vêm escritas no catálogo, algumas das excentricidades políticas da família. À "pequena holandesa" fez impressão, creio, a descontracção com que se encarou a sua chegada. Não sei como é na Frísia, mas creio que o problema é nós cau­sarmos certa impressão: temos fama mas, no fundo, temos a noção das coisas. Vantagem nossa, causarmos impressão.

Já lhe prometeram, à "pequena holandesa", uma viagem a Ponte de Lima — mal o céu esteja mais nublado nos areais e pinhais de Moledo. Suponho que o objectivo é o de acrescen­tar mais "impressão". Ela vai arregalando os olhos, querendo mostrar agrado, mas o que ela está, verdadeiramente, é surpreendida. Ontem, ao jantar, atrevi-me a perorar sobre política, a abordar a questão colonial, mencionando – com grande risco – a questão pernambucana e a saída dos holandeses da penín­sula de Itamaracá, derrotados por um bando de portugueses e de índios e negros. Travei a tempo, quando a palavra Batávia aflorou sobre a mesa, distraída, tilintando nos copos – um tio de Isabelle foi um alto quadro do governo na Batávia de outros tempos, actual Jacarta. Depois disso, tomámos o café na varanda, diante do pinhal. Em bandos, os meus sobrinhos (e a "pequena holandesa") foram dispersando e deixando a casa entregue ao seu silêncio.

Esta manhã, ao pequeno-almoço (que geralmente tomo sozi­nho), com dona Elaine relembrando que tinham telefonado de Lisboa "pedindo a crónica", Isabelle afastou uma franja de cabelo claro, mordiscando um 'croissant', para dizer como estava comovida com Moledo e com as férias onde não se fazia absolutamente nada, no meio de uma família atrevida. "Causámos uma certa impressão", murmurou dona Elaine, depois de a "pequena holandesa" se ter retirado.

in Revista Notícias Sábado – 28 Julho 2007

sábado, julho 21, 2007

A pontualidade do Verão

A minha memória dos anos em que havia férias é muito traiçoeira. Já expliquei ao leitor que o velho Doutor Homem, meu pai, só descansava realmente quando recolhia, a meio de Agosto, ao casarão de Ponte de Lima – mesmo depois da morte da matriarca da família, a Tia Benedita. Dona Ester, minha mãe, atribuía isso à necessidade de mostrar à descendência as últimas glórias da Companhia das Índias, loiça que era anualmente retirada dos armários em duas augustas ocasiões: no almoço de Páscoa, que coincidia, algumas vezes, com o aniversário da Tia Benedita; e no jantar de Natal. Abria-se uma excepção não-regulamentar durante certos Verões, quando a família se encontrava em Ponte de Lima naquela espécie de concerto campestre e desafinado, que era o ruído de várias gerações interrompendo o benigno silêncio das férias do velho Doutor Homem, meu pai. Como já contei, ele vingava-se oferecendo moedas aos netos e sobrinhos que conseguissem arrancar mais lírios dos canteiros.

Agosto era o mês mais tranquilo desse tempo, por muito que isso custe a acreditar aos meus sobrinhos, que vêem na ideia de férias um retrato de acampamentos dentro de casa e de uma balbúrdia permanente. O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que o seu conservadorismo se media pelas leituras que tinha feito e pela forma como ocupava o tempo de férias. E, na verdade, depois de gastar alguma energia e algum dinheiro a educar-nos durante quinze dias de viagem, entrava na casa de Ponte de Lima (pontualmente, ao dia dez de Agosto) com a sensação do dever cumprido e investido da missão de repousar das intempéries do resto do ano.

As férias eram um acontecimento moderno numa família que ou não as tinha (como o meu avô, que em Agosto preparava a contabilidade das vindimas que se aproximavam nas quintas do Douro) ou as gozava sem necessidade de calendário. O meu pai invejava, por isso, o irmão Alberto, considerado o aventureiro da família, dividido entre viagens pela Europa e longos retiros de trabalho no Porto ou na sua casa de S. Pedro de Arcos, onde se dedicava aos livros, à filatelia, à botânia e à cozinha regional. Recuperando os discos de Anna Moffo, a sua soprano, estirado naquilo que teria sido a sua biblioteca ideal (afastada dos corredores principais da casa), o velho advogado adormecia a meio da tarde convencido de que, finalmente, o mundo tinha alguma ordem e o movimento dos planetas algum sentido. Foi com ele que aprendi a arte, hoje desconhecida (pelo que vejo), de se retirar do mundo.

A casa de Moledo, povoada de ex-adolescentes durante os meses de verão, é uma imagem do que seriam as campanhas de Julio César, se eu estivesse na disposição de assumir o papel de Marco António. Limitei-me a estabelecer regras e a delimitar o território, estabelecendo que tenho direito a algumas horas de tranquilidade diária. Elas ocorrem, ordinariamente, durante a manhã. Não sei, hoje em dia, o que acontece de tão notável ao longo da noite, tirando “os razoáveis pecados da juventude”, porque toda a gente se deita tarde ou às primeiras horas do amanhecer.

Entretanto, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro regressou a Portugal e experimenta a sua primeira temporada de praia, no meio da turbamulta. Foi preciso explicar, àquele rigor formado pelo calvinismo de Haia e Amesterdão, o significado da expressão “época balnear”. Ela não compreendia o que as pessoas faziam durante a “época balnear” e foi preciso explicar-lhe, com abundância de exemplos e de conselhos médicos, que – pura e simplesmente – se fazia nada ou muito pouco. Ela não acreditou. Encontro-a algumas vezes, sentada na varanda, ao fim da tarde. Achei que talvez estivesse perplexa com o hábito da família, mas verifico – com alegria – que se adaptou sem dificuldade.

A minha sobrinha Maria Luísa (que já se habituou à cunhada que veio do país dos pólderes) está de viagem na Tailândia mas telefonou a lembrar que entrará em Moledo na data aprazada. Expliquei à holandesa que somos muito disciplinados e pontuais em matéria de preguiça.

in Revista Notícias Sábado – 21 Julho 2007

sábado, julho 14, 2007

Os Cabrais e a liberdade

Não há, paredes dentro, muitas saudades da Maria da Fonte. Por mim, aprecio apenas a musiquinha. Desde a minha infância que a ouço, tocada por bandas que descem as ruas, naquela tranquilidade campestre que tolda o Verão com um toque garrido e melancólico, e que pouco têm a ver com os acontecimentos da Fonte da Arcada naquele ano de 1846. O velho Camilo mencionou que aplaudiu “as mulheres viris do Minho, até para envergonhar os homens efeminados de Lisboa”. As revoluções devoram-se a si próprias, mais do que aos seus filhos, como se sabe. O próprio escritor tirou as dúvidas várias vezes, ao longo da vida. Seja como for.

Apenas o tio Alberto, que era bibliómano, coleccionou vários livros e opúsculos sobre os pequenos pormenores da história minhota – e dedicou à Maria da Fonte um recanto nas suas estantes de São Pedro de Arcos. Ele, se não fosse o tempo roubado pelas paixões e pela gastronomia, teria gostado de ser um José Augusto Vieira reescrevendo o “Minho Pittoresco”. Mas o assunto era casual e marginal. Interessaram-no mais os bastidores da Concessão de Évora Monte (nunca lhe chamou “convenção”) e a ideia de um romance de aventuras sobre o general MacDonnell (com quem se dera o Zeferino das Lamelas, personagem da “Brasileira de Prazins”), o bravo combatente escocês das fileiras miguelistas. Felizmente, nunca o escreveu; na nossa família já havia problemas bastantes. Murmura-se nas crónicas que o general seria muito dado à genebra, tanto como às amizades com as senhoras do Minho (especialmente em Guimarães), que lhe amenizariam as saudades das Hébridas.

Se a Maria da Fonte pouca importância teve na genealogia política da família, já os Cabrais (António Bernardo e José Bernardo) eram olhados como exemplo “da tirania esclarecida” – e de que se devia desconfiar, ontem como hoje. Burocratas exímios na arrecadação “do imposto”, moralistas do Estado que actuavam em nome da pátria, fiéis dessa nova religião laica que era “o progresso”, os cabralistas teriam feito do país um modelo de comportamento e de qualidades políticas. Como ordinariamente acontece, a bondade das ideias raramente tem correspondência no carácter malévolo e imperfeito das sociedades. Foi contra esse espírito que a revolta da Maria da Fonte se ergueu em alicerces sem dúvida penosos e controversos, dos quais o enterro dos mortos nas igrejas era apenas um pormenor incendiário.

O que estava em causa era a liberdade – a “santa liberdade”, o espectro amaldiçoado pelos homens perfeitos que bem desejariam que todos os outros adoptassem a sua própria perfeição, porque isso seria melhor para as suas vidas. E se não a adoptam voluntariamente, institui-se uma tirania em nome do progresso. Simplesmente, como aconteceu várias vezes, o Minho não estava, nesses anos de oitocentos, disposto a sacrificar nem a perder a sua liberdade. A parte mais substancial dessa revolta que reuniu herdeiros de liberais e de miguelistas fazia-se em nome dessa minudência que desagrada profundamente aos governos.

A verdade é que vivi bastante. Deixei de acreditar em verdades absolutas e na possibilidade de regeneração dos mortais – que prefiro assim, imperfeitos, jocosos, renitentes e ingerindo medicamentos contra o colesterol. Aprendi, com os anos e com alguns erros, que a possibilidade de ter opinião se deve a dois factores tremendos: à vaidade, nuns casos; à natureza do género humano, nos restantes. Poderia mencionar a dignidade e o direito, em geral, como outros factores. Mas não interessam tanto. Os primeiros bastam, porque são simples e compreensíveis.

A Tia Benedita, o génio ultramontano da família, comparava os Cabrais à sanha demagoga do dr. Afonso Costa. Ela conhecia, à sua maneira, o elemento humano que se encaminhava para a corrupção e para a impostura.Os Cabrais estão em todo o lado, afinal: esclarecidos, cultos, abrindo estradas e dirigindo o progresso – mas temendo muito a liberdade e as ideias contrárias. Não porque, realmente, tenham medo de ambas; mas porque a liberdade e as ideias contrárias são correntemente um empecilho que desvaloriza a sua vontade de mandar.

in Revista Notícias Sábado – 14 Julho 2007

sábado, julho 07, 2007

Elogio do bronzeado de Moledo

Havia um tempo em que os Verões tinham várias estações do ano. Não tenho saudades do tempo que passa – limito-me a lembrar as manhãs de praia e o que vem à memória, esse novelo. O velho Doutor Homem, meu pai, foi o responsável pela introdução do tema do “iodo” paredes dentro, mas o leitor já deve sabê-lo. Com o iodo (que, bem vistas as coisas, não passa de um perfume saudável e exclusivo das praias do Minho) vieram os fatos de banho, a vaidade da época balnear e a preguiça. Um por cada vez.

Os fatos de banho da minha adolescência tinham, como dizem os meus sobrinhos – ao folhearem os álbuns de fotografias da família –, gola alta. Não era verdade. Dona Ester, minha mãe, queria-os mais liberais porque acreditava nas virtudes do sol mais do que nas do iodo, e sempre imaginou que Gary Cooper tinha sido abençoado com o bronzeado eterno que ela decidiu ser um dos atributos da beleza verdadeira. Olhando para os filhos, despejando-os no areal de Moledo ou nas rochas da Apúlia (ela foi uma das primeiras senhoras da sua geração a conduzir um automóvel), recomendava-lhes que arrecadassem toda a beleza disponível, ou seja, um sol saudável e, afinal de contas, barato.

Mas o corpo é um bem escasso. Gasta-se frequentemente sem darmos por isso, esgota-se de ano para ano como um risco de areia apontado ao morro de Santa Tecla, para mais tarde se assemelhar ao esqueleto das barraquinhas de madeira e lona daquele areal que ainda frequento todos os anos, às primeiras horas da manhã ou, mais raramente, quando a tarde desce sobre as ondas – para beber um refresco de família (a limonada de outros tempos já não existe senão em casa, adocicada, baça, amarelada pelo açúcar que os médicos interditam).

Por vezes imagino que este litoral foi deserto. Vêm-me à memória coplas antigas, versos dos poetas que sentiram essa seta atravessar-lhes o coração. Martim Codax e os trovadores de Vigo estão fora da minha jurisdição, mas gosto de evocá-los entre as escarpas do litoral.

Na semana passada, cumprindo um hábito irregular, fomos a Vigo para almoçar; por onde passa a estrada eram antes caminhos arriscados que os meus antepassados percorreram a cavalo, e que os contrabandistas conheciam melhor. O que não se perdeu foi o ar do mar, a substância do litoral, propriamente dito – e o vento galego, essa obscura mistura de rosmaninho e de sargaço. Falo dos meus antepassados porque alguém teria, antes de mim, de criar ou de estabelecer a atracção dos Homem por estes caminhos. Mesmo o meu avô Homem, que se dedicou mais ao Douro do que ao Minho (ele administrava as velhas quintas dos ingleses, dos irlandeses, dos franceses e do poeta Guerra Junqueiro), gostava de – ainda que como excepção – visitar as terras onde vetustíssimos Homem de outras eras, a cavalo, tinham aprendido a apreciar as mimosas quezilentas e amarelas dos seus caminhos, e a dizer o nome dos seus amigos, de Ponte de Lima a Valença, da Barca a Cerveira e Caminha. Ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai (e de mim), o avô Homem não era um literato nem se dedicava à bibliofilia, esse vício que empenava as estantes da casa do Tio Alberto (em São Pedro de Arcos), poliglo­ta, botânico, conselheiro jurídico mais do que advogado.

A nossa família é uma constelação de vícios e de fortunas. Tivemos um tio-avô de Cerveira que, depois ter enviuvado, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel e mantinha em sua casa uns aposentos “do Remexido”; o “tio brasileiro”, Domingos Augusto, era o zénite da “ala esquerda” da família, porque conhecera pedreiros-livres no Pernambuco e se relacionara com senhoras dos Trópicos, se bem que temesse os governos que lhe iam cobrar o imposto à fazenda arrecadada na sua quinta de Afife; e recordo ainda o tio-avô dos Arcos de Valdevez, que permanece nos anais da família como “aquele que raptou uma noiva à porta da igreja”, para depois se casar com ela em Espanha (ele temia que o padre do Barroso, que estava destinado à celebração, não fosse legitimista como os do Lugo). Todos eles estão à minha volta no areal de Moledo, como fantasmas sorrindo para as dunas. E Dona Ester também – apreciando a beleza que ela acreditava nascer na pele bronzeada.

in Revista Notícias Sábado – 7 de Julho 2007