sábado, agosto 18, 2007

Esquerda, direita

Na crónica da semana passada mencionei as heranças familiares que, só por si, constituíam um bom exemplo de romance popular – que o velho doutor Homem, meu pai, man­tinha recatados na sua biblioteca. Periodicamente, transferia alguns para Ponte de Lima, onde – julgava ele – ficariam melhor. Aparentemente, nada contrastaria tanto com o velho casarão minhoto como os "romances populares", categoria em que se incluía muito a custo um exemplar das 'Viagens na Minha Terra', e creio que apenas por pirraça. Mas, devo confessar, aquela tranquilidade granítica, rodeada de heras, vinhas, roseiras de Santa Teresinha, tílias, nespereiras e duas amoreiras, convinha bastante a tal bibliografia.

A casa de Ponte de Lima devia ser considerada, de qualquer modo, o principal berço da família. As famílias já não têm casa, hoje em dia. Ou desapareceram as famílias ou se venderam as casa, duas inevitabilidades dos tempos modernos. O leitor não me ouvirá queixas sobre a matéria porque, hoje em dia, já é bom ter onde dormir ou onde esperar a velhice.

A minha sobrinha Maria Luísa manifesta, cada vez mais espo­radicamente, algumas perplexidades sobre a relação entre toda a bibliografia acumulada em Moledo (o eremitério de Moledo substitui, para grande parte dos Homem, o foral histó­rico de Ponte de Lima) e "o histórico" da família. Ela achava, em tempos, que a dimensão da biblioteca deveria afastar-nos da tradição conservadora do clã, até que ela própria (que vota­va no Bloco de Esquerda) foi escolhida para levar o retrato do senhor Dom Miguel a um artista de Braga, para que o cui­dasse e reparasse um problema na moldura. Expliquei, sem argumentos de peso, que não era preciso ser de esquerda para apreciar os grandes autores e que nem todos os bons escritores defenderam o comunismo, "o mas­sacre das classes médias" (uma expressão histórica de Eça) ou o encerramento das igrejas. A questão era inteiramente diferente - ou até a inversa: como é que uma pessoa com tamanha biblioteca poderia ser "de esquerda"? Ao chegar a esta idade, faltam-me argumentos para disputar essa lógica; não porque eles não existam, mas porque me vou esquecendo deles à medida que os anos repetem as surpresas, as leviandades e as tragédias do passado. Somos velhos, conservadores e achamos graça.

Durante mais de metade da sua vida, o velho doutor Homem, meu pai, determinou que o regime do dr. Salazar era uma cons­telação de presidentes de junta de freguesia provincianos e com medo do dia de amanhã, chefiados por um espírito de excelente oratória. Tendo sobrevivido um ano à revolução de 1974, raras vezes dividiu o mundo em esquerda e direita. A sua desconfian­ça acerca do salazarismo era congénita e, bem vistas as coisas, algo trapalhona. Ele apreciava no ditador a oratória e o dedo indicador direito apontando para a audiência; mas arrepiava-o pensar que tão sublimes discursos poderiam servir para aprisio­nar a pátria. O meu avô atribuía à anglofilia do seu filho tamanha desconfiança e "certa tendência para o reviralho", que se acen­tuou depois do final da II Guerra Mundial, quando o regime decretou o luto nacional em memória do facínora de Berlim. Mas não era apenas isso. O velho doutor Homem, meu pai, nunca conseguiu caber em nenhuma das dependências ideológicas vigentes; ele seria o primeiro a defender a tia Benedita, o génio ultramontano e matriarca da família – conquanto fosse o pri­meiro a desconfiar das suas prédicas. E estaria na dianteira, apreciando o facto (que ele julgaria um acontecimento literário ou consequência de um defeito no regime alimentar moderno) de a minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga a cuidar da vida dos ricos, votar no Bloco de Esquerda.

Bem vistas as coisas, só a tia Benedita merece crédito quan­do se trata de falar do nosso comportamento político. Para ela não havia essas dúvidas que morigerariam o seu ultramontanismo; um dia, ao exagerar no tom, dizendo que Afonso Costa viria, com a turba-multa republicana, roubar os tesouros da Sé de Braga, um dos meus irmãos lembrou-lhe de que o dema­gogo já morrera e o ateísmo republicano estava de quarentena. Estávamos em 1966, mas ela não desarmou, olhando-o de lado: "Isso é o que o menino julga."

Bem vistas as coisas, o futuro viria a dar-lhe razão. Faz de conta que eu nunca disse isto.

in Revista Notícias Sábado – 18 Agosto 2007