Heranças de família
O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de romances e sagas familiares. A fim de melhorar o inglês e de o afastar da política pátria, o meu avô enviou-o para Londres durante dois verões. As consequências foram trágicas e sentem-se ainda hoje: os Homem nunca mais foram os mesmos – a pequena vaidade da família tornou-se um espectáculo colorido, mesmo sendo produzido para ser visto apenas dentro das nossas paredes.
Quando o Porto falava francês (menos, de qualquer modo, do que a Pátria inteira), o meu pai enchia as estantes de romances ingleses e rapinava a imprensa de Londres como se fosse o pórtico da felicidade. Em vez de tocar piano e falar francês, fomos educados a apreciar música e a falar inglês. Não nos tornámos pianistas domésticos porque o velho doutor Homem tinha ouvido para a música e detectou em todos nós, desde o princípio, uma inaptidão geral para lidar com pautas ou para trabalhar o solfejo. Convém relembrar que a educação musical da minha família foi traumática desde que um meu tio-avô, deserdado da República e afastado da Marinha depois da Noite Sangrenta, decidiu – na idade madura – que iria aperfeiçoar a sua prática do oboé e compor uma espécie de sinfonia para ser executada nos Fenianos. A família inteira, mobilizada com discrição, conseguiu demovê-lo sem lhe causar danos ao talento (que era pouco) ou à estima pessoal (que era elevada e inconsciente).
O meu avô estava habituado às manias da família mas não partilhava as suas excentricidades. Desde os 28 anos que viajava pelo Douro, carregado de pastas e de livros de contabilidade, nas suas visitas às quintas de que se tornou administrador. Sabia o preço das coisas e ria apenas o indispensável, olhando para os filhos como um espectador que vai ao teatro; ele sabia que o facto de ter pago a assinatura da temporada (tinha, portanto, lugar marcado) não lhe dava o direito a escolher o repertório.
O repertório, já agora, era clássico. Os seus três filhos escolheram o mais fácil, mantendo os vícios de interpretação – dois deles tornaram-se advogados e um emigrou para o Brasil. O "tio brasileiro", Domingos Augusto, viveu uns anos no Rio de Janeiro e instalou-se depois no Pernambuco, de onde regressou no final dos anos sessenta a tempo de gozar as sombras dos altíssimos ciprestes e das nespereiras frondosas da sua quinta de Afife. Ainda assistiu à morte da tia Benedita, que o considerava um caso praticamente perdido, contaminado pelo republicanismo lusitano e pelas maçonarias do outro lado do Atlântico, bem como desgraçado pela imoralidade. Viver no Pernambuco não era fácil.
O tio Alberto viveu os seus anos de glória como um aventureiro galego ou minhoto de outros tempos. Numa família cheia de casos, ora de casamentos tranquilos, ora de bandoleiros apaixonados (um tio-avô chegou a raptar uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha, no Lugo; outro, na mesma altura, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel; o tio Henrique foi toda a vida militar reformado e músico sem obra; o meu avô limitou-se a ser um cavalheiro do Porto), o tio Alberto escolheu todas as vias, mantendo-se celibatário, advogado e gastrónomo, reunindo na sua casa de S. Pedro de Arcos aquilo que foi o melhor da sua vida: retratos de paragens distantes, bibliografia, um jardim cosmopolita (ele foi o verdadeiro botânico da família) e a beleza intacta do céu do Minho. Durante anos procurei conhecer melhor o caso da sua paixão por aquela mulher belíssima, de traços orientais, que conheceu à beira do Cáspio e que a família tratava como "a princesa russa", e que na verdade era persa e talvez fosse uma princesa. Ela morreu em 1966, em Genebra; o tio Alberto (que conservava o seu retrato, um rosto suave e melancólico, recortado sobre a paisagem de Paris) morreu dois anos depois, em São Pedro de Arcos, dias após uma viagem a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e as Astúrias, onde foi provar "as primeiras ostras do ano". As ostras não têm a ver com o assunto, mas faziam parte das suas obsessões.
in Revista Notícias Sábado – 11 Agosto 2007
Quando o Porto falava francês (menos, de qualquer modo, do que a Pátria inteira), o meu pai enchia as estantes de romances ingleses e rapinava a imprensa de Londres como se fosse o pórtico da felicidade. Em vez de tocar piano e falar francês, fomos educados a apreciar música e a falar inglês. Não nos tornámos pianistas domésticos porque o velho doutor Homem tinha ouvido para a música e detectou em todos nós, desde o princípio, uma inaptidão geral para lidar com pautas ou para trabalhar o solfejo. Convém relembrar que a educação musical da minha família foi traumática desde que um meu tio-avô, deserdado da República e afastado da Marinha depois da Noite Sangrenta, decidiu – na idade madura – que iria aperfeiçoar a sua prática do oboé e compor uma espécie de sinfonia para ser executada nos Fenianos. A família inteira, mobilizada com discrição, conseguiu demovê-lo sem lhe causar danos ao talento (que era pouco) ou à estima pessoal (que era elevada e inconsciente).
O meu avô estava habituado às manias da família mas não partilhava as suas excentricidades. Desde os 28 anos que viajava pelo Douro, carregado de pastas e de livros de contabilidade, nas suas visitas às quintas de que se tornou administrador. Sabia o preço das coisas e ria apenas o indispensável, olhando para os filhos como um espectador que vai ao teatro; ele sabia que o facto de ter pago a assinatura da temporada (tinha, portanto, lugar marcado) não lhe dava o direito a escolher o repertório.
O repertório, já agora, era clássico. Os seus três filhos escolheram o mais fácil, mantendo os vícios de interpretação – dois deles tornaram-se advogados e um emigrou para o Brasil. O "tio brasileiro", Domingos Augusto, viveu uns anos no Rio de Janeiro e instalou-se depois no Pernambuco, de onde regressou no final dos anos sessenta a tempo de gozar as sombras dos altíssimos ciprestes e das nespereiras frondosas da sua quinta de Afife. Ainda assistiu à morte da tia Benedita, que o considerava um caso praticamente perdido, contaminado pelo republicanismo lusitano e pelas maçonarias do outro lado do Atlântico, bem como desgraçado pela imoralidade. Viver no Pernambuco não era fácil.
O tio Alberto viveu os seus anos de glória como um aventureiro galego ou minhoto de outros tempos. Numa família cheia de casos, ora de casamentos tranquilos, ora de bandoleiros apaixonados (um tio-avô chegou a raptar uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha, no Lugo; outro, na mesma altura, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel; o tio Henrique foi toda a vida militar reformado e músico sem obra; o meu avô limitou-se a ser um cavalheiro do Porto), o tio Alberto escolheu todas as vias, mantendo-se celibatário, advogado e gastrónomo, reunindo na sua casa de S. Pedro de Arcos aquilo que foi o melhor da sua vida: retratos de paragens distantes, bibliografia, um jardim cosmopolita (ele foi o verdadeiro botânico da família) e a beleza intacta do céu do Minho. Durante anos procurei conhecer melhor o caso da sua paixão por aquela mulher belíssima, de traços orientais, que conheceu à beira do Cáspio e que a família tratava como "a princesa russa", e que na verdade era persa e talvez fosse uma princesa. Ela morreu em 1966, em Genebra; o tio Alberto (que conservava o seu retrato, um rosto suave e melancólico, recortado sobre a paisagem de Paris) morreu dois anos depois, em São Pedro de Arcos, dias após uma viagem a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e as Astúrias, onde foi provar "as primeiras ostras do ano". As ostras não têm a ver com o assunto, mas faziam parte das suas obsessões.
in Revista Notícias Sábado – 11 Agosto 2007
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