sábado, agosto 11, 2007

Heranças de família

O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de roman­ces e sagas familiares. A fim de melhorar o inglês e de o afastar da política pátria, o meu avô enviou-o para Londres durante dois verões. As consequências foram trágicas e sentem-se ainda hoje: os Homem nunca mais foram os mes­mos – a pequena vaidade da família tornou-se um espectá­culo colorido, mesmo sendo produzido para ser visto apenas dentro das nossas paredes.

Quando o Porto falava francês (menos, de qualquer modo, do que a Pátria inteira), o meu pai enchia as estantes de romances ingleses e rapinava a imprensa de Londres como se fosse o pórtico da felicidade. Em vez de tocar piano e falar francês, fomos educados a apreciar música e a falar inglês. Não nos tornámos pianistas domésticos porque o velho doutor Homem tinha ouvido para a música e detectou em todos nós, desde o princípio, uma inaptidão geral para lidar com pautas ou para trabalhar o solfejo. Convém relembrar que a educação musical da minha família foi traumática desde que um meu tio-avô, deserdado da República e afastado da Marinha depois da Noite Sangrenta, decidiu – na idade madura – que iria aper­feiçoar a sua prática do oboé e compor uma espécie de sin­fonia para ser executada nos Fenianos. A família inteira, mobilizada com discrição, conseguiu demovê-lo sem lhe causar danos ao talento (que era pouco) ou à estima pesso­al (que era elevada e inconsciente).

O meu avô estava habituado às manias da família mas não partilhava as suas excentricidades. Desde os 28 anos que viajava pelo Douro, carregado de pastas e de livros de con­tabilidade, nas suas visitas às quintas de que se tornou administrador. Sabia o preço das coisas e ria apenas o indispensável, olhando para os filhos como um espectador que vai ao teatro; ele sabia que o facto de ter pago a assinatura da temporada (tinha, portanto, lugar marcado) não lhe dava o direito a escolher o repertório.

O repertório, já agora, era clássico. Os seus três filhos escolheram o mais fácil, mantendo os vícios de interpretação – dois deles tornaram-se advogados e um emi­grou para o Brasil. O "tio brasileiro", Domingos Augusto, viveu uns anos no Rio de Janeiro e instalou-se depois no Pernambuco, de onde regressou no final dos anos sessenta a tempo de gozar as sombras dos altíssimos ciprestes e das nespereiras frondo­sas da sua quinta de Afife. Ainda assistiu à morte da tia Benedita, que o considerava um caso praticamente perdido, contaminado pelo republicanismo lusitano e pelas maçonarias do outro lado do Atlântico, bem como desgraçado pela imoralidade. Viver no Pernambuco não era fácil.

O tio Alberto viveu os seus anos de glória como um aventu­reiro galego ou minhoto de outros tempos. Numa família cheia de casos, ora de casamentos tranquilos, ora de ban­doleiros apaixonados (um tio-avô chegou a raptar uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha, no Lugo; outro, na mesma altura, casou com uma senhora do Alvito cuja família beijou o anel ao senhor Dom Miguel; o tio Henrique foi toda a vida militar reformado e músico sem obra; o meu avô limitou-se a ser um cavalheiro do Porto), o tio Alberto escolheu todas as vias, mantendo-se celibatá­rio, advogado e gastrónomo, reunindo na sua casa de S. Pedro de Arcos aquilo que foi o melhor da sua vida: retra­tos de paragens distantes, bibliografia, um jardim cosmo­polita (ele foi o verdadeiro botânico da família) e a beleza intacta do céu do Minho. Durante anos procurei conhecer melhor o caso da sua paixão por aquela mulher belíssima, de traços orientais, que conheceu à beira do Cáspio e que a família tratava como "a princesa russa", e que na verdade era persa e talvez fosse uma princesa. Ela morreu em 1966, em Genebra; o tio Alberto (que conservava o seu retrato, um rosto suave e melancólico, recortado sobre a paisagem de Paris) morreu dois anos depois, em São Pedro de Arcos, dias após uma viagem a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e as Astúrias, onde foi provar "as primeiras ostras do ano". As ostras não têm a ver com o assunto, mas faziam parte das suas obsessões.

in Revista Notícias Sábado – 11 Agosto 2007