sábado, agosto 04, 2007

O velho sátiro

Agosto é um mês de intempérie. Não me refiro, evidentemente, às chamadas “condições meteorológicas” nem ao clima rigoroso de calor que mortifica os pinhais de Moledo ou a serra que nos separa do interior do meu Minho. Não fossem as manhãs frescas que, às vezes, aparecem temperadas por uma neblina que vem da beira do mar – e a Moledo actual seria comparada com o Verão inclemente de outras paragens.

Raramente discuto o “aquecimento global” mas disponho-me a recordar os tempos em que a época balnear era marcada por essa imagem de veraneantes que se sentavam no areal, embrulhados num xaile – respirando o iodo mas protegidos da “brisa matinal”. A imagem não se repete hoje em dia e é retida como uma anedota local.

Chamo intempérie à ocupação da casa de Moledo que, mesmo preparada com antecedência para a chegada dos visitantes, reage com alguma surpresa às malas e sacos que são depositados nos quartos. Ontem foi a vez da minha sobrinha Maria Luísa, que chegou a Moledo já tingida de férias na Tailândia. Eu suspeito que o que leva as pessoas a passar uma semana e meia na Tailândia, numa praia certamente tropical, seja o célebre “desejo de evasão”, de que me têm falado abundantemente. Não o conheço: uma praia é uma praia, aqui ou em Copacabana, tirando a temperatura do ar ou da água. E o preço, naturalmente.

Seja como for, Maria Luísa chegou tingida daquele sol do Oriente – suave, tépido, sonhador. Diz que vem descontraída e que aquelas paragens a comoveram – templos, cidades, o chamado “espírito local”. Foi noite de fotografias: centenas de imagens rodopiaram na mesa da sala de jantar, num ecrã de computador, para que a família se transformasse numa multidão de espectadores que – à sua maneira – também esteve na Tailândia e quase foi fotografada debaixo daquele céu.

Depois da sessão de imagens, ela esclareceu, no entanto: “As férias, as férias-férias, começam agora.” A afirmação não está longe da verdade. E é aqui que começa a intempérie propriamente dita, a temporada em que a minha casa não me pertence, em que o meu silêncio me não pertence, e em que Agosto me não pertence também. De certa maneira, é uma temporada de desleixo juvenil, de leviandade e de coisas superficiais. O Verão tem essa fama. Algumas almas falam de um Estio recolhido e sério – não me convenço. O calor interrompe toda a seriedade e transforma-nos em pequenos belzebus, seres caídos em desgraça.

A Tia Benedita, matriarca da família, precavia-se do Verão. Nos últimos anos da sua vida, quando os anos setenta se aproximavam céleres (ela morreu em 1972), recolhia-se ao casarão de Ponte de Lima protegendo-se do calor, do ruído das romarias e do excesso de nudez que vislumbrava onde não havia senão mangas arregaçadas. Não o fazia por queda para o moralismo; a sua perversidade ia mais longe, aceitando as coisas como elas eram mas preferindo vê-las de longe para poder irritar-se a seu bel-prazer. As suas zangas contra os mortais e os seus vícios alimentavam-na de vigor e prolongaram-lhe a vida. Não teve, por isso, desilusões nem desalentos; limitava-se a confiar em que o mundo se encaminhava para um fim desagradável e que os que lhe sobreviveriam (nós todos) iriam cair em todo o género de tentações. Ela detectava-as à distância, com sarcasmo e alguma satisfação: divórcios, adultérios, ateísmo, comunismo, destruição das famílias – tudo eram consequências de desgraças anteriores, mesmo que ela não as identificasse ou soubesse explicar. Mas existiam. Os seus pais e avós tinham-lhe deixado essa herança ultramontana – mas apenas a ela, entregando o resto da família à corrupção, ao sensualismo e ao avanço da maçonaria. O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava-lhe o rigor. Ele achava graça àquela senhora que tinha “nascido antes da ida da corte para o Brasil” e que chegava a atribuir a queda de Goa e do estado português da Índia à maldade de Afonso Costa. Para ela, na verdade, as datas não contavam muito e vivia numa espécie de anacronismo que tanto nos divertia como nos comovia. Havia uma excepção natural: o Verão, a temporada das intempéries, a época em que, nos areais da nossa época balnear, crescia uma imoralidade que fatalmente ia contribuir para a degeneração da raça.

Felizmente, nada disso teve consequências na nossa leviandade. Continuo, hoje como ontem, a esperá-lo como um sátiro à beira da reforma.

in Revista Notícias Sábado – 4 Agosto 2007