sábado, outubro 20, 2007

Complementos directos

Transmitidos numa televisão a preto e branco, os derra­deiros telejornais do velho regime eram tristes e enfadonhos, mas tinham boa gramática.

Com o tempo, a televisão habituou-nos ao lastimável espec­táculo de gente que mastiga sílabas com aplicação, construindo frases onde raramente um advérbio está bem colocado ou onde os verbos nunca pedem complemento. O desastre não destrói apenas a gramática; atinge, salvo erro, um pouco de tudo.

O velho doutor Homem, meu pai, com o seu temperamento frio e pouco loquaz, prezava muito a oratória do dr. Salazar – achava-a "muito indicada para o País", expressão que fazia acompanhar de um gesto que limitava a fronteira do território até à porta de casa. Ele achava que uma frase bem equilibra­da equivalia a ter maneiras à mesa e era um bem precioso num tempo em que os clássicos já tinham desaparecido dos nossos vícios e das nossas famílias.

A minha sobrinha Maria Luísa, que ficou muito desiludida com o Prémio Nobel dado àquela senhora inglesa que nasceu na Pérsia, mantém-me actualizado acerca das novidades literárias mais correntes. O seu objectivo é o de fornecer-me razões para pensar que o mundo não está perdido. Perniciosamente, ela deixa nos sofás, estrategicamente abandonados, alguns livros que poderiam ilustrar-me nos anos finais de uma vida dedicada a recusar coisas novas ou modernas. Folheio alguns e leio poucos; não sou um crítico; não passo de um modesto zelador de coisas obsoletas onde, nos meus momentos de vaidade, pensei encontrar algum género de prazer intelectual. Esse tempo passou demasiado depressa e mantive-me o mesmo preguiçoso de sempre, incapaz de trocar Disraeli por Garrett ou de abdicar das velharias que me acompanham desde a juventude – o prazer da novidade dá algum trabalho a ser merecido ou gozado e nem sempre é retribuído. No entanto, reconheço, esta tentativa de educar o meu pobre espírito constitui uma espécie de troca comercial ou de compensação pelos livros ainda não devolvidos e retirados das minhas estantes. Não me importo com eles; vivo rodeado das coisas essenciais – e esse é um dos raros prazeres concedidos aos velhos que aprenderam, com os anos e com o reumatismo, a abdicar de quase tudo excepto das suas memórias.

O velho doutor Homem, meu pai, achava que o País (esse mundo que vivia para lá da porta de casa) bem podia abdicar de várias coisas. Ele assistiu com passividade ao final do Império, considerando – com alguma justiça — que tudo estava já previsto desde que D. Pedro nos tinha "livrado do Brasil". E, se a queda dos territórios da índia não foi uma surpresa ("nem um bem nem um mal"), o fim do Império, depois de 1974, apenas ilustrou o que tinha de ilustrar – o fim do mundo como o conhecíamos na altura. Se o País abdicou do seu império, pois que não abdicasse, ao menos, dos par­cos talentos que ainda reservava nos alicerces. Em vão. O País mudou muito; os telejornais da democracia já não são enfadonhos nem tristes; apenas são mais amargos e enegre­cidos por fatais erros de gramática. Os meus irmãos comen­tam bastante as conversas do prof. Marcelo Rebelo de Sousa, garantindo que se trata de "um pantomineiro com graça". Acedo à definição. Os Homem sempre prezaram os "pantomineiros com graça" porque sabiam que não deviam acreditar neles; bastava apreciar-lhes o descaramento, que é premiado pela democracia. Mas nada de cometer-lhes alguma seriedade. Foi essa a razão por que o velho doutor Homem, meu pai, duvidou da figura daquele homem de monóculo e sobrancelhas pesadas, que encabeçava a revo­lução. O então general Spínola podia ser um general muito bom – mas usar um monóculo durante a revolução era por certo mau prenúncio. Poderá argumentar-se que no calor das revoluções ninguém se preocupava com questões de estilo ou de gramática. Mas a observação sobre o funesto destino do general estava condenada a entrar nos anais da família. E foi. Foram. Ambas as coisas.

in Revista Notícias Sábado – 20 Outubro 2007