sábado, outubro 13, 2007

A melancolia de Outono

A grandiosidade do crepúsculo do Outono não me traz à memória "those sad, dangerous things", aquelas tristes e perigosas coisas para que o velho doutor Homem, meu pai, nos costumava advertir. Ele tinha lido o verso num daqueles poetas isabelinos que assinalavam a triste doçura do amor e citava-o amiúde quando os plátanos da Foz começavam a anunciar o Outono.

Como todos na família sofriam da tentação do demónio meteo­rológico, a indicação não era vista como uma ameaça de "recaída literária", mas como um indicador para quem sofria de reumatismo ou era receptivo aos vírus das gripes sazonais. Aliás, dona Ester, minha mãe, acreditava que só eram permi­tidas quatro constipações por ano, cada uma delas correspon­dendo a uma estação. Mais do que isso era considerado um excesso quase temperamental, que merecia alguma indiferen­ça. Esta determinação tão pouco maternal podia ser vista – erra­damente — como uma manifestação de crueldade; na minha infância, as mães tratavam dos filhos como repositórios de doenças prováveis. Na altura não sabíamos o que eram vírus, e as gripes eram atribuídas ao ar do tempo ou às suas mudanças. O planeta estava cheio de perigos invisíveis e as crianças deve­riam sobreviver-lhes com a contribuição de agasalhos que eram generosamente ministrados mal a "época balnear" se avizinha­va do seu termo.

Dona Ester, minha mãe, educada num colégio inglês do Porto, lera apenas a puericultura suficiente para saber que os filhos nascem e crescem em contacto com a natureza, os banhos do rio (o Douro seria uma espécie de Tamisa), cami­sas imaculadamente brancas ao jantar e muita disciplina no cumprimento de horários. Tirando isso, os jovens deviam bron­zear-se. O velho doutor Homem, meu pai, acusava-a de um certo desvio levantino, verificando a insistência no contacto com o sol e a praia. Ela atribuía virtudes essenciais ao contacto com o sol de Verão, certamente com base na crença de que o corpo humano era uma espécie de bateria recarregável anualmente durante os meses de estio. O seu marido con­cordava, suspeitando que o facto de se tratar de seis filhos era um argumento muito justo para os enviar para o areal, libertando a casa dessa horda de selvagens, adolescentes ou não. Mas o princípio, a doutrina, ficavam: a frequência da praia produzia corpos e mentes saudáveis. E produziu.

De modo que o crepúsculo do Outono não é um prefácio à melancolia da época. Traz-me recordações invejosas. Naquele período que ia do Verão de Ponte de Lima (quinze dias de Agosto, fatais e silenciosos, familiares) ao recomeço da vida depois das férias, havia um período em que permanecíamos na praia, assistindo à despedida da época bal­near. Os anos cinquenta foram os meus anos românticos; o pôr do Sol de Afife, a estrada do Minho (esse litoral fotogénico que vai de La Guardia até aos arredores de Vila do Conde), a primei­ra viagem ao Brasil, o meu Verão no Tamariz – tudo isso tem um ar de despedida de época balnear. De repente, os toldos de praia (uma raridade na época) recebiam o primeiro látego do vento de Outono, as primeiras chuvas, as leituras finais que sobravam da biblioteca aconselhada pelo velho doutor Homem, meu pai, con­fiante em que todas as estacões do ano eram boas para cultivar o espírito e para afastar os sintomas de barbárie. Mas eu já não era adolescente na altura. As minhas irmãs atravessaram mais tarde a sua adolescência e tinham saudades da cidade e das amizades. Os meus irmãos queriam regressar ao convívio de rapazes e desfazer-se daquela modorra estival. Eu já tinha envelhecido e vestia fatos cinzentos, ou escuros, e usava cha­péu. Formava a minha biblioteca. Resumia os meus amores até então como um Casanova que frequentava A Brasileira mas não confessava as suas perdas profundas. Lia a imprensa com serie­dade, interessava-me, jogava ‘poker’. O crepúsculo do Outono, com aqueles tons de domingo vespertino, ou o ruidoso crepitar das lareiras de Inverno, só comovia o meu lado 'dandy' que jul­gava viver para lá do canal da Mancha, caminhando em parques cheios de árvores ou em cidades cheias de alfarrabistas. Num desses Verões desfez-se o meu casamento, que só tinha sido anunciado com moderação. O meu pai mencionou, vaga­mente, que "o Kubitschek vai construir uma cidade lá no Brasil". Dona Ester, minha mãe, enviou-me para o Tamariz, para que me curasse. Já nessa altura, o Verão era uma espé­cie de sanatório.

in Revista Notícias Sábado – 13 Outubro 2007