domingo, fevereiro 17, 2008

O arbítrio das coisas

Antigamente, os assuntos de família tratavam-se na inti­midade do lar. A expressão é ga­rota e fadista, porque já não há "intimidade do lar" e a expressão usa-se para provocar um ligeiro esgar vagamente aparentado com o sorriso.

O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que a educação dos seus filhos (éramos cinco) competia à ordem estabelecida dentro das paredes de casa. Con­vinha que eles (nós) tivessem boas digestões, bom carácter, fossem criados na presunção de que exis­te um Dia do Juízo e deixados ao arbítrio das coisas - para que aprendessem.

O "arbítrio das coisas" já se não usa desde que a 'puericultu­ra' se transformou em 'pedagogia' e a classe média inventou a exis­tência do 'trauma'. Os pedagogos leram Rousseau e aplicaram-se na sua tradução para efeitos práticos, esquecendo que o filósofo se endividava, abandonando os filhos e maltratando a família, até abandoná-la para se aproveitar da fortuna de uma amante. Na elegante linguagem erudita da Tia Benedita, seria "um tonto".

A minha sobrinha Maria Luísa, que vota esporadicamente no Blo­co de Esquerda quando as eleições não a afastam da praia, em Moledo, desencantou-se com a pedagogia e berrou com os dois filhos, proi­bindo-os de ver televisão. "Veja lá, não os traumatize", murmurou Dona Elaine, que não desviou os olhos da revista espanhola onde aprende o essencial sobre o 'high-society' do Mundo. Ela é a gover­nanta da casa de Moledo, onde a família se reúne aos domingos para o almoço familiar. Sabe pou­co de pedagogia mas aprende os rudimentos da vida contemporâ­nea com os diálogos das telenove­las portuguesas.

Maria Luísa compreendeu a iro­nia da observação. Dona Elaine, sim, estava traumatizada porque os rapazes cavaram trincheiras em redor dos canteiros das tulipas (a sua flor preferida, tirando as japoneiras), cujas pontas rebentaram na se­mana passada. "Eu quero lá saber dos traumas, vou in­terná-los num colégio ou enviá-los para adopção."

"Fico à espera", respon­deu a governanta. Ela sabe que o velho Doutor Homem, meu pai, que odiava os gladíolos e lí­rios brancos do jardim de Ponte de Lima, dava - aos filhos e sobrinhos - dez tostões por cada rebento arrancado e destruído. Manteve--se sempre na clan­destinidade, deixan­do-nos "ao arbítrio das coisas" e en­frentando um julga­mento por bandi­tismo botânico.

in Domingo – Correio da Manhã - 17 Fevereiro 2008