quinta-feira, abril 24, 2008

História de um casamento

A minha sobrinha interroga-se várias vezes sobre aquilo que pensa serem "os mistérios sentimentais" desta família. Eu compreendo. As pessoas não vêm do nada e não se podem mencionar "os mistérios da concepção", da hereditariedade e da passagem de pais a filhos, sem pensarmos na existência dos "mistérios sentimentais". Infelizmente, o "mistério" de maior sucesso nos anais familiares está esclarecido há muitos anos – e é recordado pelo Verão, ocasionalmente, sobretudo se está bom tempo em Agosto e há casamentos nos adros das igrejas.

A Tia Benedita tentou, sem sucesso, transformá-lo numa nota de rodapé das nossas memórias; em vão. Num domingo de 1933, enquanto na casa portuense o velho Doutor Homem, meu pai, assinalava num mapa desdobrado sobre a mesa da sala de jantar os últimos sucessos da Alemanha, que tinham começado no incêndio do Reichstag em Fevereiro, e culminado na crescente popularidade de Hitler, um dos nossos tios partiu para as serras do Minho a fim de roubar uma noiva à porta da igreja.

O caso daria para romance. Nessa época, andava-se a cavalo entre os Arcos e Ponte da Barca, por caminhos escurecidos pelas sombras de mimosas e de carvalhos. Não era o cenário ideal para uma aventura protagonizada por um dos últimos militares da família, quase contemporâneo do bigode Mouzinho e das fardas de Sidónio – mas servia ao propósito. A noiva, como convinha ao cenário, à estação do ano (o Verão) e à figura do tio, era uma prima já afastada que não protestou ao abandonar parte do véu branco durante a fuga, que só terminaria em Espanha. Casaram no Lugo, um dia depois, e regressaram depois à Pátria, que os guardou em silêncio enquanto as famílias se preparavam para aceitar o matrimónio.

Maria Luísa acha que a história requer cores dramáticas e um transe cinematográfico. Infelizmente, vejo-a a esta distância como um suavíssimo filme romântico, cheio daquela música que lembra os domingos de antanho. Os Homem, tirando as aventuras além-fronteiras do Tio Alberto, foram uma família desinteressante, uma família de antigamente.

O meu sobrinho Pedro contou o argumento à sua noiva holandesa. Ela suspirou e, naquele rosto de herdeira calvinista, apareceu o quase imperceptível rubor da moral. Depois do divórcio na hora, ninguém suspeitava que tínhamos sido pioneiros no casamento precedido de fuga.

in Domingo - Correio da Manhã - 27.04.2008

domingo, abril 20, 2008

O Brasil de então (2)

A Tia Benedita, matriarca da família e guardiã do miguelismo no velho casarão de Ponte de Lima, pensava que o Brasil era o reino da lascívia e nunca desculpou ao Tio Alfredo Augusto o facto de se ter recusado, durante muitos anos, a abandonar o Pernambuco para regressar ao Minho – só o fez depois de a Tia Benedita ter morrido, mas não havia ligação entre uma coisa e outra.

No final da década de sessenta o Brasil terminava para nós, mais de cem anos depois de o futuro Imperador ter atravessado o rio Ipiranga. Já nesse quadro histórico havia um pouco da encenação em que o Brasil tão bem se exprime – o retrato de um caudilho de donos de escravos e plantadores de cana-de-açúcar montando um improvável alazão e pronunciando a frase que todos os caudilhos sul-americanos repetiram, mas entoando-a como se fossem os seus criadores: “Independência ou morte.” Escrevo-a sem o respectivo ponto de exclamação – para não acordar o leitor. Com o regresso do Tio Alfredo Augusto, que foi morar para Afife como um brasileiro dos romances de Camilo refugiado em Prazins, encerrava-se o ciclo das aventuras coloniais da família. Uns anos depois, quando as províncias africanas decretavam a independência, o velho Doutor Homem, meu pai, limitou-se a comentar que tudo isso já estava escrito desde que D. Pedro atravessara o longínquo regato: “O senhor D. Pedro já começou o trabalho há muito, no Ipiranga.”

Pensando bem, nós nunca perdoámos ao Brasil ter-se separado da Pátria sem dar explicações satisfatórias. Nunca lhe perdoámos o sotaque nem a devassidão notória. Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendimento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual “uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado independente”. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regressaram ao poder em 1974.

in Domingo – Correio da Manhã – 20 Abril 2008

domingo, abril 13, 2008

O Brasil de então (1)

O Brasil de Kubitschek foi um ídolo da minha idade madura. Foi nesses anos de prata – quando se construía Brasília no planalto – que visitei o Brasil a conselho do meu pai e a pedido da minha mãe. Do grande país apenas senti o aroma de Copacabana e da velha capital (era então capital) que rescendia ainda a portugueses da Cinelândia. Falava-se na época um português primoroso, não como o de Ruy Lacerda ou Roberto Campos (aconselho o leitor a verificar, com o manuseamento de “A Lanterna na Popa”, seu livro de memórias), mas aquele português cordial e carioca, que vinha de Machado de Assis, o nosso último representante nos trópicos.

As minhas razões eram sentimentais. Dona Ester, minha mãe, recomendou-me o Brasil porque o Tamariz desse Verão não tinha sido suficiente para afastar todas as nuvens que sobraram da tempestade. A tempestade era sentimental – “um amor descuidado”, como murmurou o Tio Alberto, bibliógrafo de São Pedro dos Arcos e gastrónomo de Paredes de Coura, além de aventureiro oficial da família. Digamos que o Brasil foi a minha ida à farmácia: eu iria curar-me. Curei-me. A Copacabana de então (fiquei alojado no velho Hotel Glória, no Flamengo, porque pertencia à classe dos advogados de família) foi o perfume que me distraiu da viagem, que foi longa, e dos desaires, que foram ligeiros – vistos a esta distância. A minha correspondência da época, familiar, discreta e cordata, registou uns trópicos amenos que, mesmo assim, não descansaram a Tia Benedita. Ela via no Brasil a antecâmara da devassidão e da lascívia. O velho Doutor Homem, meu pai, garantia que o dr. Salazar decerto sentiria a mesma apreensão quando enviava cônsules e embaixadores para o Brasil, temendo que cedessem vilmente à tentação da carne.

Nesses meses do Rio de Janeiro compreendi que a vida tinha uma leveza que não era conhecida dos meus conterrâneos. Eu próprio não a entendi logo porque não tinha palavras para a traduzir no nosso idioma, tão sensato e cheio de orações conjuntivas. Nunca voltei a sentir nem aquela leveza nem a ventura de estar de passagem. Todo o resto da minha vida se concluiu preso à raiz de sempre: uma casa, uma biblioteca, uma família. Nunca houve acordo ortográfico que me salvasse dessa nostalgia.

in Domingo – Correio da Manhã – 13 Abril 2008

domingo, abril 06, 2008

Não saber elogiar a mudança

Um dos filhos da minha sobrinha Maria Luísa cometeu as primeiras patifarias da adolescência. Adverti o leitor, em tempo, de que nasci já depois da minha própria adolescência – as etapas da rebeldia juvenil foram-me suaves como o perfume das salas da velha casa portuense dos meus pais. O velho Doutor Homem, meu pai, raramente se incomodava com aquilo que os anos sessenta denominaram “generation gap”, porque supunha – e bem – que quase tudo se resumia a ter maneiras na idade apropriada. O salto de gerações, ou o “abismo de gerações”, também nunca incomodou Dona Ester, minha mãe: ela achava, com uma clareza meridiana e surpreendente, que para nos formar um bom carácter era necessário, antes de mais, afastar-nos dos perigos do sentimentalismo, das pneumonias e bronquites, da asma crónica e das fantasias de uma adolescência prolongada. O resto resolvia-se com um pouco d bom-senso, que não era conveniente delapidar a todo o instante.

A vida familiar dos Homem resumia-se à contabilidade dos presentes nas reuniões familiares obrigatórias à razão de três por ano – uma na Páscoa, outra pelo Natal e uma outra, que com o tempo passou a facultativa, em pleno Verão, organizada para coincidir ligeiramente com o aniversário da Tia Benedita, a matriarca reaccionária do clã. Para felicidade dos participantes, pouco ou nada se mencionavam questões pedagógicas, reduzidas a assuntos de puericultura geral.

Os tempos mudaram, inevitavelmente. O que eram para nós insondáveis segredos da Criação aos quinze e dezasseis anos, são hoje evidências demonstráveis a qualquer criança de dez ou onze. Ao contrário do leitor, que é moderno e acha que o “conhecimento” é um bem absoluto, bom em si mesmo, eu tenho dúvidas. O leitor acha que se devem festejar as mudanças. Eu acho, pelo contrário, que se deve festejar aquilo que nos dá satisfação e acrescenta um pouco de felicidade à nossa vida, que é um pouco aborrecida; nem todas as mudanças fazem parte do caminho onde gostaríamos de nos encontrar.

Fico um pouco barroco, nestes casos. É da idade. Depois dos oitenta, não há grandes novidades que nos comovam – mesmo o filho da minha sobrinha Maria Luísa, apanhado em desobediência e prevaricação, não constitui inovação especial na minha galeria de conhecimentos. Estava escrito.

in Domingo – Correio da Manhã – 6 Abril 2008