domingo, maio 04, 2008

Os jardins da família (1)

De entre as várias espécies botânicas que povoaram o jardim do casarão de Ponte de Lima, onde se albergam as memórias, as fotografias e as vergonhas dos Homem de outros tempos, havia duas nespereiras que a idade consumiu. Ao contrário de Moledo, onde o jardim se submete à preguiça do jardineiro – eu –, Ponte de Lima tem uma tradição a defender. À minha sobrinha Maria Luísa agrada esta balbúrdia de Moledo, onde a disciplina apenas pousou sobre os vasos da varanda, alinhados por espécies, cores e época de floração; o jardim, a dois passos do pinhal onde todos os meus sobrinhos assinaram as suas respectivas declarações de independência, já foi um emaranhado de recordações, provenientes de viagens que forneceram espécies regionais, curiosidade e plantas “exóticas” – tudo foi crescendo em conformidade com essa suave anarquia. Já em Ponte de Lima, como dizia, há uma tradição.

Para começar, havia uma fila de ciprestes, altos e sombrios, rente ao muro que dava entrada no casarão. Depois, a Tia Benedita considerou – e ao longo de toda a vida, porque Deus a abençoou com o milagre de algum bom-senso – que jarros e hortênsias não eram flores para mostrar à entrada de casa, de modo que as trepadeiras de rosas de Sta. Teresinha, coloridas e arrumadas, acompanhavam o primeiro relance sobre a fachada austera e granítica da casa onde os velhos Homem tinham prestado os seus respeitos e fidelidade aos retratos antigos, e onde heras ainda mais vetustas tinham feito a sua morada. Só em redor das varandas das traseiras, em canteiros sólidos e desenhados por pedreiros de Santa Marta de Portuzelo, havia lugar para a imaginação, uma raridade naquele lugar. O velho Doutor Homem, meu pai, detestava-o. E pagava generosamente (moedas de dez tostões por unidade) aos seus sobrinhos-netos para arrancarem e esconderem gladíolos e cravos. Até ser denunciado, o jardim foi ganhando outra beleza, após o que voltaram a ser repostos os gladíolos, os cravos e até alguns lírios, por vingança. O meu pai nunca se interessou pela jardinagem, embora gostasse de jardins. Pelo contrário Tio Alberto, seu irmão, era um botânico notável – que nunca na sua vida teve um jardim. As suas viagens e os seus delírios gastronómicos afastavam-no do calendário rural. Explica-se facilmente: vivia em plena serra.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 de Maio 2008