domingo, junho 29, 2008

A vaidade de um livro

Não é todos os dias que um Homem abandona a sua província para se aventurar nos caminhos da Pátria. Desde 1985, quando me fixei em Moledo, que raras vezes tenho abandonado o perímetro do meu Minho. Ao contrário do meu Tio Alberto, que se enamorou várias e repetidas vezes de senhoras estrangeiras, e que por isso conhecia os melhores hotéis de Madrid, a cor do lago de Genebra, os sabores de Paris ou o odor do Mar Cáspio, eu segui o destino dos velhos Homem de antanho, que só conheciam ou o caminho para casa ou o mapa das deambulações do senhor Dom Miguel. Quis o destino que este Matusalém minhoto tivesse de esperar pelos oitenta anos para revelar a baixeza da vaidade e da pequena luxúria. Refiro-me à escrita. Deixei, enfim, de ter vergonha. É um pecado como qualquer outro, mas não se pode fazer nada contra o pormenor.

Quando em Janeiro passado o Dr. Octávio Ribeiro me convidou a escrever no seu jornal, levou-me a jantar num restaurante onde não ia há mais de cinquenta anos. Na mesma sala, nessa noite longínqua, o velho Doutor Homem, meu pai, recomendou-me que me divertisse (eu partia para o Brasil no dia seguinte) e não esquecesse a gramática. Tenho tentado, rodeado de livros, plantas e um país que já não conheço.

Com este livro, os velhos Homem de outros tempos coraram nos seus jazigos – mais uns tempos e seríamos democratas e acompanharíamos, com o pé, o ritmo do Hino da Carta.

Agradeço a todos. Se o livro tivesse de ser dedicado a alguém, escolheria duas pessoas (além do velho Doutor Homem, meu pai, da Tia Benedita, que ao longo de oitenta anos nos protegeu do bolchevismo, da devassidão moral e do fantasma de Afonso Costa, ou do Tio Alberto, o bibliógrafo e gastrónomo de São Pedro dos Arcos). Falo da minha sobrinha Maria Luísa, leitora fiel e hóspede quase permanente de Moledo, a única esquerdista que sente alguma ternura pelo miguelismo da família. E falo de Torcato Sepúlveda, um jornalista que tive o prazer de conhecer durante um almoço nas margens do Minho. Descobrimos, ao mesmo tempo, que éramos leitores de Camilo e, provavelmente, os últimos portugueses a ter lido o Minho Pittoresco ou o Tristram Shandy. Infelizmente, a morte sabe onde nos vir buscar, mesmo que não estejamos preparados.

No resto, para além da vaidade de um pobre velho do Minho, resta-me esperar que a leitura do livro sirva de consolação a alguém que o leia. Tal como o iodo de Moledo.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Junho 2008

domingo, junho 22, 2008

Os perigos principais

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as novas gerações estavam ameaçadas pela má literatura, pela eternidade e pela abundância. A abundância tornava-as menos humildes, a eternidade prolongava-lhes a preguiça e a má literatura impedia-as de reconhecerem a beleza, se a vissem. Ainda hoje não sei onde um advogado quase anónimo, especialista em direito bancário, foi buscar essa trilogia, mas reconheço-lhe alguma fiabilidade.

Nós éramos, convenientemente, gente remediada. Habituados há muito a terem uma profissão e a acordarem cedo, os Homem conheceram sobretudo a riqueza dos outros mas nunca se queixaram para além do aceitável. Dona Ester, minha mãe, foi a primeira mulher da família a ter um carro – mas isso não se devia à abundância e sim a uma certa vontade de chocar as burguesias moderadas do Porto. O facto em si tinha algum charme e não deixava de ser imoral; a Tia Benedita, garantia do ultramontanismo familiar, nunca achou bem, mas sentiu-se em segurança quando foi, de boleia, visitar uns primos dos Arcos – e viu nisso uma vantagem a usar com parcimónia. Essa mediania de costumes e de recursos nunca nos permitiu voar mais além do que o permitido, mas, como nos habituámos a considerar os limites com uma certa largueza, conhecemos dentro de portas o sabor da aventura – que era ligeiramente salgado e atrevido. Assim o julgava o meu Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, cuja derradeira e mais conhecida paixão, o levou às margens do Cáspio. Só na literatura a nossa vaidade se excedeu, apesar da vigilância familiar – coube-me a função de bibliotecário-geral, uma espécie de almoxarife das bibliografias, encarregado de distribuir títulos e exemplos para toda a família.

Vejo hoje, com curiosidade, que o meu pai não incluía nem o haxixe nem o bolchevismo entre os perigos que assolariam as novas gerações. Os meus sobrinhos explicam-me, com avareza de meios e argumentos, mas com uma certa bonomia, que há coisas piores. Quando todos eram adolescentes, dedicavam-se a períodos contemplativos nos pinhais vizinhos (eu ignorava o facto, mas conhecia-o), procedendo ao que já designei como "cerimónias rituais" para fumar haxixe – e sobreviveram. Já quanto ao bolchevismo, estávamos protegidos pelos maus hábitos da liberdade. Só a Tia Benedita via nele uma ameaça, tão perigosa como a República e o dr. Afonso Costa.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Junho 2008

quinta-feira, junho 19, 2008

Os males da existência


Na próxima semana o Dr. António Sousa Homem deixará Moledo e estará em Lisboa para, na quarta-feira, 25, às 18h30, na Livraria Pó dos Livros, lançar o seu livro Os Males da Existência. Crónicas de um Reaccionário Minhoto. A apresentação estará a cargo de Maria Filomena Mónica. Oportunidade para uma conversa.

"Sou um conservador, um botânico e um velho. Até como botânico sou conservador, reservando sempre o mesmo espaço para as begónias – que me lembram Júlio Diniz e Uma Família Inglesa – e o mesmo enlevo para os hibiscos. A velha casa de Moledo, onde a família passa os domingos e, episodicamente, os finais de semana, não acolhe memórias de um século; alberga apenas a poeira de oitenta e quatro anos assinalados, religiosamente, em Dezembro de cada ano e anunciados à família como um avanço na conservação da espécie."

domingo, junho 15, 2008

O verão de antigamente

O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava o Verão como uma espécie de interregno nos negócios terrenos – essa paragem, só o soubemos mais tarde, não o comovia nem o entusiasmava. Era apenas o regresso a um estado de adolescência febril que ele mascarava com a tradicional bonomia dos dias de romaria estival, quando uma sinfonia de bandas de música, altifalantes roufenhos e o esvoaçar dos melros, vinha parar ao pátio do casarão de Ponte de Lima.

Por mais que o mundo se transforme, por mais que o Verão se transforme nesta espécie de euforia turística em que a democracia o vestiu, essas temporadas de Ponte de Lima transportam consigo uma neblina de nostalgia que me lembram as férias de outrora. O velho Doutor Homem, meu pai, não escondia que pertencíamos à classe privilegiada e que Ponte de Lima, com as suas sestas, as noites de bridge e Porto Tawny, só eram possíveis porque o mundo era como era. Ele não assistiu à popularização das férias no Algarve e nas Caraíbas, nem à transformação do mundo exótico do Oriente, ou do Brasil, numa espécie de terreiro para as burguesias nacionais gastarem as suas economias. Dona Ester, minha mãe, limitava-se a sugerir que os rapazes deviam ganhar bronzeado durante o Verão – ela, a primeira mulher da família a dirigir um carro, despejava-nos em bando nos areais de Afife na esperança de nos ver adquirir essa beleza natural que as praias do Minho forneciam em abundância, juntamente com o iodo, a poeira e o conhecimento do perigo, representado pelas marés altas.

Pelo contrário, a temporada de Ponte de Lima era o período dedicado a resistir ao mundo inteiro. A minha sobrinha Maria Luísa sente a nostalgia dessa tranquilidade sem a ter vivido realmente, porque as novas gerações desconhecem a preguiça vivida como um imperativo. Há três quartos de século, a nossa casa de Ponte de Lima era o poiso certo da família – boémios do Porto que estacionavam o carro à entrada, primos galegos que vinham praticar o "português gastronómico", tios com apetite e bibliografia, e até meninas casadoiras que vinham tentar a sua oportunidade. O velho retrato do Senhor Dom Miguel, ao fundo do corredor, irradiava uma luz triste, de final dos tempos. O velho Doutor Homem, meu pai, passava por ele e seguia para a biblioteca, onde ouvia os discos de Anna Moffo, a soprano do seu coração.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Junho 2008

domingo, junho 08, 2008

Os banhos de mar

Aguardo o Verão em Moledo, e sei que ele voltará depois de dobrar a pequena fortaleza da Ínsua até espalhar-se sobre o areal. Por isso mesmo, Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, onde vivo desde os anos oitenta, considera que Maio e Junho são meses de grande provação. Ela refere-se às hordas de visitantes que virão assentar praça nos quartos da casa, distribuindo-se por "uma semana agora, uma semana depois", espalhando haveres pessoais que noutra estação do ano seriam absurdos.

Neste período, ela pede que tome nota das despesas que vêm aí: tradicionalmente entregue à solidão da província, a casa de Moledo transforma-se num acampamento familiar, durante os meses de Julho e Agosto.

Todos os anos se repete o ritual barulhento de uma imigração selvagem que não atemoriza Dona Elaine. Limitada pela minha dieta octogenária, sustentada a torradas matinais e à diminuição gradual de comida de outros tempos, acho que ela anseia pela chegada do Verão para exibir a reserva de receitas guardadas entre as páginas da sua cópia do "Pantagruel", um dos cinco ou seis livros que lhe vi ler durante os últimos vinte anos.

Mas, mesmo no Verão, Moledo é um reduto da província de outrora. O bem mais inestimável continua a ser "o iodo", essa designação miraculosa que tanto se refere ao frio inclemente que vem da praia pelas manhãs, despertando os pinhais, como a própria temperatura da água do mar. Além de mim, só Isabelle, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro – conhecida na família como "a pequena holandesa" – acha as águas de Moledo uma espécie de antecâmara dos trópicos. Ela vem da Frísia natal, e dos mares do Norte; eu venho de décadas de hábitos conservadores. Ambos estamos habituados a esta disciplina climática que conservou a saúde de várias gerações e as impediu de vestir fatos-de-banho fora de época.

A minha sobrinha Maria Luísa raramente nada no mar de Moledo. Mas aprecia bastante que os filhos esbracejem na crista das ondas, verificando por si próprios o que significa um "banho frio", que "faz bem à saúde". Ela justifica-se com os meus argumentos, mas escusa-se a adoptá-los para si própria. As jovens mães de hoje compreendem a necessidade da disciplina e da contrariedade – mas já vão atrasadas para tomarem o caminho da felicidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Junho 2008

domingo, junho 01, 2008

Coisas adiadas

Estamos a ser muito requisitados do lado de lá. O aviso, triste e sincero, foi dado pelo velho Doutor Homem, meu pai, quando o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de São Pedro de Arcos, morreu a meio da Primavera. Diante daquele vazio preenchido pela biblioteca – uma intromissão cosmopolita na paisagem rural e na decoração sóbria e masculina de uma casa de celibatário – a meditação tinha toda a razão de ser, profunda e cava como uma despedida de romance.

Ao fechar a porta de São Pedro de Arcos – lembro bem os seus gestos –, deixando para trás um mundo onde as recordações estavam condenadas à erosão e aos restos de pólen, o velho Doutor Homem relembrava momentos da vida do seu irmão, enriquecida com peregrinações por todos os lugares onde as suas paixões o tinham requisitado. Tenho, hoje, pena de não ter conhecido a sua prometida noiva russa, ou persa, a quem ele sobreviveu dois anos. Recordo-o mais intensamente nestes dias como um aventureiro romântico, um cavaleiro de Alexandre Dumas partindo pela noite fora procurando um destino e nunca para fugir à sua solidão.

A Tia Benedita, cautelosa, não partilhava desta admiração. Consolava-a o facto de ele regressar, mas a história da princesa russa, ou persa, afligia-a por julgá-la contaminada pela desgraça. Convém esclarecer que a historiografia familiar tem grandes dúvidas sobre a sua origem, nas margens do Cáspio, onde o Tio Alberto colheu o pecado do caviar. Apenas se garante a sua existência. A partir de certa altura habituamo-nos a ser requisitados do lado de lá. A vida está cheia de histórias incompletas, de vidas por preencher e desta melancolia arrastada pela poeira da Primavera. Em tempos difíceis resignamo-nos e convencemo-nos de que estamos em viagem.

Nestas ocasiões a minha sobrinha Maria Luísa traz-me algum conforto. Ela, que vive em Braga e cuida da existência dos ricos (providenciando-lhes gosto doméstico e contas para pagar), vem passar os fins-de-semana a Moledo. Há cinquenta anos, provavelmente, eu teria vivido enfeitiçado por uma jovem mulher que se sentasse na varanda, fumando o seu cigarro, e comentando literatura de outros séculos. Como a memória nos ensina, chegamos sempre atrasados ao lugar onde a vida teria começado. Mas esse é um assunto que deixo para a próxima semana. Adiar é a única coisa que faço razoavelmente.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 Junho 2008