domingo, agosto 24, 2008

O direito a não casar (1)

A minha sobrinha Maria Luísa ficou chocada com um dos capítulos terminais do "Monte dos Vendavais", quando Heathcliff consuma a sua vingança e maltrata o filho de Hindley – ela acreditava que Mr. Heathcliff , por ser um personagem de Emily Brontë, devia ter sentimentos nobres ou, pelo menos, mostrá-los aos leitores. Expliquei que Tristram Shandy e o Lazarilho de Tormes só com dificuldade seriam convidados para a mesa de almoço dominical em Moledo – a menos que fosse para contar as suas histórias, que alegraram gerações de leitores egoístas (todos os grandes leitores são egoístas) mas que não seria bom elogiá-los enquanto modelos de virtudes.

Isto aconteceu por alturas do seu segundo divórcio (não sabia que tinha casado), e Maria Luísa não se comove hoje com a maldade da literatura – sabe que é uma coisa de papel. O pormenor é suficiente para que amemos Madame Bovary, o que não significa que as senhoras da família lhe sigam os passos (a minha sobrinha descobriu, tardiamente, que é "uma balzaquiana" e só depois leu "A Mulher de Trinta Anos").

Boas pessoas é o que há mais; mas não convém confiar. Maria Luísa, por exemplo, que tem muito mais experiência do que eu em matéria de casamentos e de divórcios – eu nunca casei –, reconhece que o casamento "é uma coisa fácil" hoje em dia. As minhas irmãs reprovam-me o cepticismo e atribuem o meu estado celibatário a uma substancial dose de preguiça que me perseguiu desde as primeiras e fatais desilusões amorosas; assim, mantendo-me "um solteirão de província" (é esta a expressão usada), nunca tive de conhecer os prazeres dos conflitos matrimoniais nem precisei de me iniciar nos mistérios da puericultura. Maria Luísa, que conhece mundo, limita-se a achar-me "um malandro dos antigos", imaginando-me vestido de "dandy" a recusar propostas de casamento feitas por damas da velha sociedade da Foz, há cinquenta anos, pelo menos. Para não a desiludir, não exprimi a minha opinião sobre o assunto – que se tratava apenas de preguiça e de conformismo. Mas contei-lhe os passos essenciais da biografia do Tio Alberto, também celibatário, e que tinha uma agenda de senhoras a visitar pelos cosmopolitas caminhos da Europa – até ao Cáspio, onde tinha nascido o derradeiro amor da sua vida. Ela não se convenceu. Ela não sabe que, na época, o chique era não casar.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Agosto 2008