domingo, novembro 30, 2008

A primeira geada de Inverno

O velho Doutor Homem, meu pai, costumava relembrar que o senhor Dom Miguel deixara os seus bens a fim de pagar dívidas de guerra e o soldo dos seus militares. Alguns deles quebraram as espadas na penumbra de Évora Monte e aguardaram que o destino não lhes fosse pesado demais – como foi, incendiado pelo desejo de vingança. O velho causídico via nisso um gesto de nobreza, já raro no seu tempo e muito mais hoje em dia, quando dinheiro e política andam de mãos dadas para provar a natureza do género humano, que é fraca e cheia de tentações a que não sabe como resistir.

A minha sobrinha Maria Luísa (a voz progressista desta família minhota), que já achou estes assuntos uma velharia, vê neles, agora, uma certa utilidade. Ainda que não o confesse, ela nutre alguma ternura pelo velho retrato do Príncipe pendurado ao fundo do corredor da casa de Ponte de Lima, o que eu atribuo à desilusão que chegou cedo ao seu progressismo, alimentado de combates tentadores que iam da liberalização do haxixe à quebra do sigilo bancário. Depois de uma fase de pedagogias modernas, os seus filhos voltaram – no Verão passado – a decorar a tabuada e a declinar verbos segundo as velhas regras. Atribuir alguma espécie de ligação entre a ternura pelo retrato do Príncipe e a cantilena repetitiva e pouco melodiosa da tabuada de multiplicar é certamente exagero ideológico; mas alguma coisa haverá. O desejo de alguma ordem no mundo é uma coisa conservadora e muito útil. Em primeiro lugar porque se chega à conclusão de que o mundo é imperfeito; depois, porque nos leva a optar pelo mal menor em vez de procurar estabelecer a perfeição a todo o custo, onde nada falha, nada inquieta e nada falta.

Nestes primeiros dias de frio inclemente – uma primeira geada poisou sobre os pinhais de Moledo – as reflexões de um velho começam por aceitar a meteorologia e acabam a perder-se em teoria política. Olho para os meus livros na estante. Eles guardam vários anos de desilusões e muitas décadas de arrumações inúteis; tentei dar-lhes uma ordem para que a minha vida se tornasse mais confortável. No andar de baixo (é domingo) os filhos de Maria Luísa soletram e rabiscam. Da cozinha vem o aroma que lembra o leve torpor da família reunida à volta da mesa. O jardim mostra as feridas das primeira podas de hidrângeas e magnólias. Se estas coisas se perdessem, eu teria de – à semelhança do bravos soldados derrotados em Évora Monte – quebrar a minha espada.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Novembro 2008

domingo, novembro 23, 2008

Gozar a vida, encolher os ombros

Num mundo que começava a ficar dividido entre esquerdas e direitas, e no qual as esquerdas eram apoteóticas e as direitas estavam apoplécticas, o velho doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida. A esta distância, vejo que foi um homem sensato. Não foram cativantes, por assim dizer, os anos sessenta. Para quem não precisou de esperar trinta anos para decidir que o doutor Salazar servia para capelão mas não para acompanhar as vicissitudes do mundo, os anos sessenta não foram nem uma novidade nem uma contrariedade. Estava escrito que seriam assim e que teriam de existir períodos semelhantes. A pátria era um lugar sereno e familiar, cheio de gente modesta maltratada sem o saber.

O velho doutor Homem, meu pai, que conhecera a boémia em Paris e tratara de negócios em Londres – tudo antes da Guerra –, sabia que existia um mundo para lá de Vilar Formoso e, com toda a certeza, para além de Biarritz. Ele experimentara-o com a volúpia do andarilho embevecido e a moderação dos homens de bem. Ou seja, com a cautela dos portugueses. O seu luxo cosmopolita, que até aí fora pago pela bolsa paterna, passou, depois do casamento e do nascimento dos filhos, a ser uma espécie de sublevação e revolta contra o país onde, desgraçadamente, uma sardinha no pão era considerada um meridiano aceitável. Arrastando consigo uma família de crianças turbulentas que invadia hotéis balneares com a graciosidade de zés-pereiras, ele sempre acreditou que as viagens, o conhecimento do mundo, o domínio seguro de mapas de estradas e a prática de línguas estrangeiras eram portas que forneciam, necessariamente, ilustração capaz de nos afastar da pequenez da pátria. Não que ele a renegasse. Mas embirrava bastante com ela e com o doutor Salazar. E essa era uma sensação que tomava conta do velho doutor Homem, meu pai, ao reentrar em Portugal depois de percorrer centenas de quilómetros pelas miseráveis estradas espanholas.

Os anos sessenta não foram, pois, uma grande novidade. A educação liberal, o cinema e a generosidade dos costumes, longe de produzirem uma geração interessada em reformar a pátria e em civilizar a política, fabricaram grupos de rapazes de mau feitio e jovens senhoras desejosas de degradação e de liberdade. De modo que o doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Novembro 2008

sábado, novembro 15, 2008

O mundo perfeito

Vivi toda a minha vida com receio das pessoas que imaginam um mundo perfeito. De vez em quando ouço-as, profetizando: "Um dia o mundo será assim, perfeito." E um temor antigo, reverencial, amargo e cheio de pudor toma conta de mim nesse momento – talvez por hábito e também por conhecer um pouco da história dos homens e das suas ilusões. Neste assunto sigo à risca os preceitos da Tia Benedita, a matriarca da família, que sempre viu o mundo cheio de pecadores – fossem eles simples devassos e adeptos do amor-livre, quer se tratasse de carbonários, bolchevistas ou amigos do dr. Afonso Costa. O mundo é a soma das nossas imperfeições. Abençoada Tia Benedita, que quase não conheceu a dor da desilusão.

Ao ler no jornal que a Comissão Europeia decidiu autorizar a venda – em lojas – de "frutas e legumes não normalizados", imagino para onde vão os nossos impostos ou as moderadas economias de uma vida: para ajudar a Comissão Europeia a construir um mundo perfeito, um mundo onde feijões e espinafres, maçarocas de milho ou simples repolhos queimados pela geada saem dos campos com o peso certo, a cor indicada e o tamanho requerido. Habituado a lidar com as imperfeições da natureza, desde relâmpagos irregulares a bolbos de tulipas a necessitar de arredondamento, esse temor (antigo, reverencial, amargo e cheio de pudor) tomou conta de mim como uma ameaça incontrolável. Subitamente, imaginei fiscais ou vigilantes (modernos e tontinhos, pagos por todos nós, mas convencidos de que existe ou de que existirá um mundo perfeito) entrando pelo meu jardim e multando os diospiros por estarem maduros demais (como Dona Elaine os prefere para os lanches de sábado) ou endireitando os ramos dos hibiscos, empurrados pelo vento.

O velho Doutor Homem, meu pai, deixou-se enfeitiçar pelos jardins ingleses da sua juventude e abominava a esquadria clássica dos do Porto – achava aquela perfeição triste e decadente, própria de espíritos degradados. Por várias o imaginei, de noite, descendo as colinas do Palácio de Cristal, de tesoura em punho, repondo a irregularidade das japoneiras e abrindo sulcos no relvado cheio de geometrias, como um agrimensor tresloucado. O tempo deu-me razão: devemos ter medo do "mundo perfeito". Por detrás dessa ideia, velhaca e sumptuosa, há uma mediocridade inabalável.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Novembro 2008

domingo, novembro 09, 2008

Embirrações de Novembro

Novembro instala, definitivamente, a melancolia em Moledo. Com a melancolia vem o frio e, com ele, a inclemência dos restantes elementos – chove nos pinhais em redor da casa, chove na serra, chove aquela chuva mansa e galega que vem nos romances de Camilo José Cela como uma ameaça sobre os homens. O velho Doutor Homem, meu pai, não acreditava em "estados melancólicos", que atribuía a demasiadas leituras e à nossa poesia sentimental, uma "fábrica de tristezas" assinada por vates que deviam ir à inspecção da tuberculose. Ele tinha uma certa embirração com o temperamento choramingas e com os sonetos sobre as folhas de Outono (à distância, compreendo-o), achando o entardecer na Foz o cúmulo de romantismo, seguido à distância dos parques de Londres da sua juventude.

Muito contra a ideia portuguesa de que temos quatro estações, e que serve geralmente para discutir questões gerais de meteorologia, o meu clima ideal é o do Moledo primaveril, sempre com a ameaça do Estio pendurada nas abas das serras em redor. Climas tropicais e climas invernais vão muito contra a estirpe ondulada e leviana da família, habituada a facilidades e já desajustada diante de contrariedades tão banais como a chuva fora de época ou o granizo nos pinhais. Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, diz que os Homem se julgam donos do mundo e pensam em mandar nos Elementos, como se o senhor D. Miguel ainda fosse vivo. Não é assim; trata-se de puro comodismo e do desejo de embirrar com a mentalidade romântica, que acha que deve existir uma relação entre as estações do ano e as regras da gramática.

Pessoalmente, a minha embirração com o Inverno deve-se a motivos práticos – prefiro aquilo que já defini ao leitor como a temporada do "glamour", coisa que já existiu em Moledo quando se passeava nos pinhais em pleno Outono, de casaco de 'tweed' e boné irlandês. O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que o Outono era "uma estação com estilo": não só se arrumava o velho litoral do Minho, libertando-o das hordas invasoras, como se podia vestir qualquer coisa decente e respirar o fresco das manhãs sem ser interrompido pela obrigação de participar na 'época balnear'.

Nessas alturas, diante desse debate sobre a organização do universo e do guarda-roupa, Dona Ester limitava-se a recordar que o seu ideal de Verão era o de Biarritz, como nevoeiros pendentes sobre as escadarias dos hotéis. Ela sabia como meter a família na ordem.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Novembro 2008

domingo, novembro 02, 2008

Liberais de antigamente

Há, na história da família, uma guerra surda que se trava nos corredores da memória sempre que alguém menciona a palavra "liberal". São evocações de outros tempos, que têm dois termos. O primeiro deles em Évora Monte, Maio de 1834, onde se assina a capitulação e se anuncia o fim da guerra civil (uma parte da família menciona como mais importante o facto de o príncipe ter pernoitado em Alvalade ainda aclamado como rei); o segundo, mesmo que poucos o admitam de bom grado, acontece apenas em Agosto de 1938 quando José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, foi fuzilado às escondidas pelas autoridades, apesar do perdão da rainha. Malhas do império. O leitor que entende, entende. O leitor que não entende, pois que procure – porque o essencial está dito se acrescentar que na velha casa dos Homem, em Ponte de Lima, lá permanece, ao fundo de um corredor, uma muito razoável cópia do retrato do senhor D. Miguel (de que a tia Benedita me consagrou guardião, para meu desespero pessoal – na época).

Já se vê como a palavra "liberal" ecoa dentro de paredes. Mas, com as estações do ano, a imprensa de mexericos e o comboio Lisboa-Porto, os Homem tornaram-se "filósofos". Retiro a ignomínia do 'Eusébio Macário', em que Camilo usa a palavra para identificar os que se "adaptam" aos novos tempos sem ferir susceptibilidades e sem se fatigarem à procura de melhores justificações, desde que o baronato ou o sossego estivessem garantidos. No nosso caso, o baronato não veio, felizmente, mas o sossego vivia-se a espaços.

O velho Doutor Homem, meu pai, gostava dos conservadores ingleses e creio que, uma vez por outra, sobretudo quando chovia e as horas dos Clérigos soavam como um arremedo londrino, ele se julgava um eleitor "tory" peregrinando até ao seu clube para ler o 'Telegraph'. Para ele, que já viveu num período em que se tinha esquecido a Concessão de Évora Monte, a palavra "liberal" já não evocava os horrores pressentidos pela Tia Benedita. Ele simpatizava muito com Dr. Miguel Veiga, que tem – no seu escritório da Foz – uma cópia da declaração de D. Pedro assumindo a vitória depois da guerra civil. Nunca se imaginaria que os dois se batessem em duelo. Um e outro pertenceriam à mesma família – mas davam-lhe nomes diferentes.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Novembro 2008