segunda-feira, janeiro 26, 2009

A falta de interesse

Quando era jovem não tinha insónias. Atribuo o facto à minha vida desinteressante, distribuída pelo escritório, pelo cumprimento dos deveres profissionais, pelas amizades da época e pelas muitas horas dedicadas a leituras certamente enfadonhas. As minhas irmãs, que sempre me olharam com a curiosidade que se deveria devotar a uma espécie rara, e que nesse papel tentaram depois substituir Dona Ester (minha mãe), acrescentam a falta de preocupações familiares e a ausência de uma mulher que castigasse a leviandade do meu carácter.

Em seu entender, uma esposa deveria proporcionar-me um nível adequado de preocupações, de modo a economizar no sono e a manter-me acordado quando o corpo me ordenasse que dormisse. Admito que seja assim, mas não quero menosprezar o velho hábito de beber ‘café de cevada’ – uma das tradições do Porto – e de manter a rotina de jogar bridge em dias certos da semana. Esses horários e hábitos, que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram- -me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias.

As leituras enfadonhas ocupam um espaço determinante na biografia dos patriarcas e matriarcas da família, desde a Tia Benedita ao Tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos. O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de bridge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico.

O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados modernamente e que despertaram em mim a vontade de dormir. Digo--o sem ironia: sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas, nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa 'falta de interesse'.

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Janeiro 2009

domingo, janeiro 18, 2009

Coisas de família

O meu tio-avô Marcelo não foi banido da família – nem podia –, mas restam poucos retratos dele nas paredes do casarão de Ponte de Lima onde se albergam as nossas memórias. Salvo erro, a tia Benedita falava dele quando chegava ao Minho a suave canícula de Verão, porque isso lhe lembrava África e talvez os perigosos sertões e planaltos de Angola, cheios de perigos naturais, de animais à solta e de doenças ainda sem nome.

A família, como já contei ao leitor, tem poucas ligações com África – ficou traumatizada com a malária do tio Henrique, que regressou de Benguela doente e convencido de que ia compor uma obra sinfónica para relembrar a glória da Pátria, já que a sua carreira militar não lhe permitira batalhas heróicas. O velho Doutor Homem, meu pai, teve um trabalho sério e delicado para o convencer a desistir da empresa e a ficar-se pela prática do oboé, seu instrumento predilecto.

A história do tio Marcelo é inteiramente diferente e assemelha-se à de um aventureiro que viveu as suas aventuras só para nos espantar com a sua capacidade de sobreviver a todos os perigos, lá, nas savanas que prolongam o horizonte, nas florestas cheias de insectos e nas noites duvidosas do Império, longe do Minho – onde, como se sabe, está o marco geodésico que assinala o centro do Mundo, pelo menos do nosso mundo.

O tio Marcelo partiu para Angola porque não se quis casar com uma jovem de Vigo com quem tinha dançado num baile de verbena, à vista daquele mar cantado por Martim Codax. Consta que o tribunal de família o instigara ao matrimónio, depois de verificar a quantidade de viagens entre o Minho e a Galiza e o dinheiro gasto nos pequenos casinos clandestinos da Coruña e de Santiago, entre charutos canarinos e brandy Domecq. O remédio era casá-lo. Contra essa tirania, o tio Marcelo fugiu de paquete para Angola, de onde não mais voltou – mas de onde enviava periodicamente notícias de colheitas, negócios e cidades erguidas no meio de clareiras poeirentas e solitárias. O seu coração era bom; a sua vida deve ter sido matéria de um romance; a sua despedida deve ter sido tranquila.

Nestas noites de Inverno, folheando os álbuns de família, ocorre encontrar este e aquele, gente que só os velhos impedem de serem esquecidos porque a sua memória vai mais longe do que a própria vida. Vejo agora o tio Marcelo no varandim de um paquete, com um fato de cheviote, sorrindo para mim. E tenho saudades de um tempo que nem sequer vivi.

in Domingo - Correio da Manhã - 18 Janeiro 2009

domingo, janeiro 11, 2009

Viver apenas metade do dia

A pequena holandesa, Isabelle, a namorada do meu sobrinho Pedro, está quase portuguesa: durante as 'férias de Natal' já não contei com ela para me acompanhar na mesa do pequeno-almoço e criticar os outros habitantes da casa por se levantarem tarde demais. Geralmente dividíamos o primeiro dos pratinhos de torradas enquanto falávamos dos maus-hábitos dos ausentes: levantar tarde, deitar tarde demais, aproveitar apenas metade do dia. À medida que aprofundou o contacto com os vícios da 'civilização do sul', 'a pequena holandesa' (a designação é de Dona Elaine, a providencial governanta deste eremitério de Moledo) foi cedendo ao pernicioso contágio dos seus piores defeitos.

Creio que tem a ver, sobretudo, com a idade. Na minha adolescência, a luz eléctrica era um luxo e a sua distribuição abundante uma surpreendente raridade. Manter as luzes de casa acesas requeria um prolongamento da nossa existência – que nem sempre vinha, uma vez que era preciso erguer a horas de família laboriosa. Depois das onze da noite, não havia rádio; e (temo bem desiludir os meus sobrinhos-bisnetos) recordo aos mais desatentos que não havia televisão. Poderia haver luz pela noite fora, mas não havia o complexo de objectos, ocupações, distracções e apelos que hoje circulam em casa. Muitas vezes, na biblioteca (aquele soturno armazém de livros onde habito frequentemente), desligo as luzes e tapo os ouvidos como se pudesse regressar a esse mundo de silêncio em que os vultos desapareciam depois das onze da noite. A minha sobrinha Maria Luísa imita-me nestas circunstâncias, e senta-se junto da penumbra das estantes com o argumento de que a família se vai tornando numerosa; ela nunca aceitou o facto de a "pequena holandesa" ter sido aceite logo à primeira visita e chegou a mencionar, com alguma perversidade, o facto de na Holanda se fumar bastante haxixe.

Tanto eu como ela apreciamos esse momento dourado do dia, quando a luz se despede e a geada principia a anunciar-se entre a copa das árvores. A essa hora, durante as férias, os ocupantes do andar inferior começavam a ouvir-se a sair das tocas, preparando-se para mais uma noitada depois de terem perdido uma refeição e mais de metade do dia útil. Útil, quero dizer: útil para perceber a mágica luz dos primeiros dias de Janeiro. A vida destas pessoas está a ficar dramaticamente mais curta.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Janeiro 2009