domingo, maio 31, 2009

Lições de história numa família Miguelista

O volume (com anotações marginais em lápis ou em tinta azul pardacenta) estava reservado às leituras seculares do Verão, geralmente passado na tranquilidade de Ponte de Lima. Era o tempo ideal para disciplinar a historiografia. Será muito difícil esquecer aquelas tardes cheias de luz, estivais, preguiçosas, às vezes intermináveis, de outras vezes curtas demais – e por isso não sei por quem A Quadrilha dos Marçais foi escolhido para leitura. Naqueles anos não havia propriamente ‘leituras de Verão’ ditadas pela moda mais recente. No Minho dos anos cinquenta as novidades demoravam bastante a chegar e, quando chegavam, depois de o velho Doutor Homem ter transportado a família até ao velho casarão de granitos cobertos de musgo e hera, já tinham passado de moda.

O Tio Alberto era uma excepção comovente e o livro pertencia-lhe. Tinha sido publicado em 1938 e falava da guerrilha e das perseguições entre as margens do Douro e do Côa, primeiro entre ‘miguelistas’ e ‘liberais’, depois entre fiéis à rainha ou convictos da Junta do Porto e da Patuleia. No fundo, era a prova de que a província, a velha província dos nossos antepassados, conhecera a crueldade e a violência da mesma forma que as cidades a tinham promovido. Pelas suas páginas escorria sangue justo e injustificado, relatos de emboscadas nos vales de amendoeiras que limitavam o cenário bucólico e produtivo das vinhas do Douro, suspeitas de assassinatos decididos em casas de família. A ideia de que existia uma bondade natural no género humano, uma sensibilidade ‘rural’ e muito dada a concertos campestres, caía por terra depois dessas descrições e dos inventários de atrocidades cometidas em nome das bandeiras de ocasião.

O velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a encolher os ombros, encarando com grande naturalidade o desfile de mortandades e de crimes, mencionando a necessidade de relativizar o nosso espanto. “Nada que não tivesse acontecido.”

A minha sobrinha Maria Luísa descobriu o livro num destes fins-de-semanas polvilhados pela tepidez de Maio, mas afligido por uma trovoada cujos relâmpagos anunciavam um entardecer tranquilo sobre os pinhais de Moledo. As minudências de história pátria são pouco comentadas para que não pareçam leviandades. No fundo, as hordas vão e vêm, deixam um rasto de sangue e de desperdício. Tem sido assim desde o princípio das coisas, enquanto nos limitamos a escolher o que não pode ser escolhido: o nosso passado. A família não o esconde: fomos miguelistas de primeira e de última hora. Já não podemos escolher outra coisa.

in Domingo - Correio da Manhã - 31 Maio 2009

domingo, maio 24, 2009

O senhor marquês de Chaves e outras minudências da Pátria

Em horas de maior dificuldade o velho Doutor Homem, meu pai, usava Oliveira Martins como argumento e barreira contra a insanidade. Ele acreditava que a leitura do ‘Portugal Contemporâneo’ era um bálsamo para o radicalismo e uma ventania refrescante o suficiente para impedir excessos e entusiasmos ideológicos. Tinha razão, como de costume – mas Portugal não lhe seguiu o conselho, também como de costume. A verdade é que não podia. O ‘Portugal Contemporâneo’ é a obra de um homem desiludido com o seu passado próximo, desagradando aos vintistas e revolucionários porque não lhes gabava Saldanha nem o príncipe brasileiro; e desagradando aos miguelistas e conservadores – nós – porque não os absolvia das forcas nem da cobiça bandoleira. O retrato ajusta-se.

De facto, quando o velho Doutor Homem, meu pai, queria fustigar os da sua – a nossa – trincheira, limitava-se a invocar a figura do senhor marquês de Chaves a comportar-se como um vilão nas freguesias de Amarante ou da Régua. Havia elementos sagrados, a começar pelo Príncipe, mas todos nós sabíamos (até por experiência própria, vale a pena recordar) que o exército ideológico conservador estava cheio de cicatrizes. Essas cicatrizes foram alargadas pela mania portuguesa de fazer pregação sem necessidade. A vitória dos ‘liberais’, as assinaturas na Concessão de Évora Monte e a partida do senhor D. Miguel para o exílio (a que a Tia Benedita, sempre oportuna, gostava de acrescentar o fuzilamento do Remexido às mãos das milícias radicais do Algarve – que só puderam matá-lo usando o expediente da traição) transformou os manuais da História Pátria numa confederação de vitoriosos e vencedores. Ou seja, numa galeria de arrogantes. Os portugueses foram, doravante, educados a acreditar que todos os conservadores eram facínoras ao serviço da Áustria, que todos os padres eram gémeos do Frei Januário dos ‘Fidalgos da Casa Mourisca’ e que a regeneração e salvação da Pátria foi obra dos marujos e exilados que desembarcaram na Praia dos Ladrões como ‘os bravos do Mindelo’, e que depois se deitaram ao trabalho, incansáveis e competentes, transbordando de predicados.

Quase duzentos anos depois, as feridas estão saradas por falta de comparência dos derrotados – nós. A minha sobrinha alega que apenas existem três tipos de miguelistas hoje em dia: o primeiro, é composto de remediados descendentes dos fidalgos transmontanos e minhotos; o segundo, constituído de leitores de Camilo (à falta do próprio Camilo); o terceiro, composto apenas por mim, sentado à mesa da biblioteca neste eremitério de Moledo, manejando a velha Parker que herdei e que ela herdará. Conto que a caneta a faça um nadinha mais conservadora. O resto vai por si.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Maio 2009

domingo, maio 17, 2009

A crise do crédito e a memória do tempo

A crise do crédito preocupa os meus dois irmãos, que murmuram por números quando lhes falo por extenso. É um hábito. Considerado a múmia da família, uma espécie de Matusalém minhoto, sou também visto como um sujeito que não aprecia os grandes exercícios de contabilidade e finanças, um domínio reservado à estratosfera da inteligência.

O crédito é um assunto antigo na família e na Pátria. Muitas vezes se discutia apaixonadamente o sistema bancário – o velho Doutor Homem, meu pai, foi um dos primeiros especialistas em direito bancário e, entrando no escritório pela sua mão, segui-lhe as pisadas. Admito que já então se manifestava a minha preguiça aliada à falta de originalidade.

Nasci velho e não passei por essa fase dolorosa da adolescência – que encontrei apenas mais tarde, durante a cura de um mal de amor. Na época, Dona Ester, minha mãe, recomendou-me alguma diversão e areias do Tamariz durante um Verão inteiro; ela achava que mar, banhos de sol e refeições completas eram um bálsamo para almas feridas. Segui o conselho e fui enviado ao Brasil, onde, durante três longos meses (que depois me pareceram curtos) me tornei, simultaneamente, admirador e detractor de Juscelino Kubitschek. Soube da sua morte pelas páginas de ‘O Primeiro de Janeiro’ a meio de uma gripe que me reteve na cama durante alguns dias, em 1976 – e recordei, na época, a sua figura de galã moreno e alto, de rosto limpo e riso fácil, sem-vergonha. Actrizes estrangeiras e cantores românticos passeavam-se por Copacabana, quando visitei o Rio de Janeiro e, inadvertidamente, me comportei como um adolescente salvo por um romance que teria de durar o tempo que durou. Kubitschek iluminava esses anos com os seus sonhos de um Brasil dourado. Por detrás desse brilho de glória, civilização e cosmopolitismo, o dinheiro jorrava em bom ritmo, vindo não se sabe de onde. E, mesmo fascinado por Kubitschek, tornei-me também seu detractor, porque alguém teria de liquidar a factura desses festejos e dessas exibições no Jockey Club (Brasília ainda não existia). A isso se resumia a questão do crédito. A isso se resume ainda hoje.

Muitos anos depois, já após a morte de Kubitschek, o cenário repetiu-se em Portugal. A memória de um velho que não quer mal aos outros, mas que frequentemente se preocupa com o mal que os outros sofrem, é um resumo de tragédias e de farsas. A crise do crédito existe porque o crédito não é compensado.

A minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, segue e compreende esta lógica, mas não concorda com ela – por preconceito.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Maio 2009

domingo, maio 10, 2009

Princípios de aritemética e educação antiga

O conjunto de trabalhos escolares da minha infância não se resumia a ler, escrever e contar. Era preciso, também, limpar os velhos aparos de pena, verificar os tinteiros e ajudar nos trabalhos de jardinagem nos canteiros da escola. Havia o regresso da escola, a pé, pelos passeios molhados de Inverno. Os conhecimentos de aritmética básica prolongavam-se no tempo, estavam relacionados com um mundo cheio de limites e de fronteiras, e de operações mentais que exigiam mais memória do que artifício. Acreditava-se que a memória era um bem inestimável e indispensável, que era necessário treinar, aperfeiçoar e defender. A geografia da Pátria, há setenta ou oitenta anos, era mais complexa (hoje não se estuda), feita de linhas férreas que percorriam vales ao longo dos rios, perfuravam as montanhas e se estendiam por lezírias ou planaltos a que era preciso dar um nome. A história estava salpicada de milagres e coincidências maravilhosas que explicavam a nossa existência como povo escolhido – uma espécie de optimismo fundamental, cheio de auto-estima e de orgulho.

Não fosse o cepticismo em que fomos (eu, primeiro; os meus irmãos, depois) criados, coroado pelo riso escarninho do velho Doutor Homem, meu pai, e acreditaríamos que a pátria teria nascido com o vetustíssimo D. Afonso num planeta mais ou menos deserto ou, pelo menos, cercado de castelhanos e de pretinhos que tínhamos ido salvar em África e no Brasil. Felizmente, a família manteve sempre um certo horror ao vazio e às coisas simples. Esse catálogo de heróis, navegantes, guerreiros, exploradores, artistas, religiosos e vencedores era frequentemente alvo dos velhíssimos ressentimentos domésticos, que não perdoavam nem a glória inquestionada do “Frei Luís de Sousa” nem as colecções de estampas da I República promovendo o seu nacionalismo pateta, nem sequer os primeiros acordes de “A Portuguesa” – cuja autoria, certamente por ser insensível de ouvido, a Tia Benedita atribuía ao regente de uma banda de música dos Arcos de Valdevez que acompanhara o Tio Henrique nas deambulações por África, e a quem contagiara a paixão pelo oboé.

Foi, assim, criada uma geração de rebeldes antes do tempo em que a rebeldia passou a ser incentivada na escola. As minhas irmãs lamentam-se e acham que perderam tempo com ninharias, apesar de nunca terem sido impedidas de ir aos bailes dos Fenianos. Elas nunca leram Ortega y Gasset, mas interpretam bem a doutrina – ao inverso. Gostam da vida assim mesmo, e encontram muitas virtudes na democracia.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Maio 2009

domingo, maio 03, 2009

O melhor das famílias não está nelas próprias

Dona Elaine enviuvou cedo e regressou do Brasil no final dos anos setenta para gozar com placidez um pé de meia constituído por poupanças e investimentos modestos no Rio de Janeiro de então. Tal como as mulheres do Minho de antanho, ela tinha as suas arrecadas. Há roda de vinte anos que comanda, organiza, chefia e administra o eremitério de Moledo, vigiando com discrição e autoridade os meus medicamentos, as minhas refeições e os agasalhos de que me rodeio nesta Primavera mais fria (ela garante que “sempre teve tino para médica”) – além de preparar a família para a obrigatoriedade das efemérides públicas ou privadas. Na linguagem dos modernos ela é, pois, “uma gestora”, mas com capacidades mais amplas e credíveis – e com um dedo sublime para o arroz de pato, a cabidela, o cabrito no forno e os vários bacalhaus com que a nossa tradição nos honra, sem contar com o peixe cozido com que me sustento na maior parte do tempo, honrando a idade e as recomendações do meu clínico de Viana.

Céptica como uma mulher do vetusto Minho, cautelosa, ela desdenha das grandes novidades, a que atribui – quase sempre – a intenção de complicar a vida. Longe das disputas ideológicas que se travam pelo universo fora, Dona Elaine é a garantia de que tudo tem uma ordem, um sentido e uma necessidade para acontecer. Com o tempo, assemelha-se parcialmente à Tia Benedita, a matriarca da família (que ela não conheceu), e, tal como ela, fica tão desapontada com a falta de pontualidade das nêsperas como com a chuva no domingo de Páscoa.

Mais do que tudo isso – D. Elaine é o emblema da casa de Moledo, o símbolo dessa ordem que paira sobre todas as coisas e até sobre os visitantes, fortuitos ou regulares. Os meus sobrinhos (especialmente a minha sobrinha Maria Luísa) mantêm que se trata de uma reaccionária profissional disfarçada de governanta e que apenas usa uma máscara afável e simpática. Eles conhecem pouco de história pátria e não podem avaliar até que ponto o Minho Antigo, essa conjugação de catolicismo popular e de pragmatismo (na política e na vida de todos os dias) constitui uma fortaleza inexpugnável, capaz de resistir por muito tempo às ameaças da modernidade. O velho Doutor Homem, meu pai, gostaria de tê-la conhecido, nem que fosse para sustentar a tese, bastante polémica até há uns anos (aqui dentro de casa, aos almoços de domingo), de que o melhor das famílias não está nelas próprias – mas nas proximidades.

Ao ler estas crónicas, Dona Elaine sorri – ela sabe que a vaidade de um velho é uma coisa inofensiva. Apenas o alimenta de alguma esperança.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Maio 2009