domingo, junho 21, 2009

Uma recordação de Benguela e Lobito

O Tio Henrique dera dado à grandiloquência dos militares. Dedicado ao seu velho oboé, com cujos acordes pretendia iniciar uma obra sinfónica que nunca chegou a compor – mas de que executava passagens imaginárias –, ele é um dos personagens destinado a confirmar senectude da família. Nos momentos mais solenes, à mesa do almoço ou à hora do chá, e recordando as campanhas de África em que participou, relembrando as paisagens de Angola, emocionava-se como se toda a sua vida tivesse sido emoldurada pela História. Mas a verdade é que a sua vida africana se limitara a cumprir missões de reconhecimento em redor de Benguela e do Lobito na qualidade de estratega de engenharia militar, o que não impediu que fosse devolvido ao Minho depois de tombar de um cavalo e de lhe ter sido diagnosticada malária. Antes de abandonar aquela geografia tórrida e poeirenta assistiu ainda às primeiras viagens do Caminho de Ferro de Benguela e ao escândalo do Banco de Angola e Metrópole. Nem a malária nem o pobre e maltratado oboé lhe diminuíram o gosto pelas grandes frases. Ele imaginava-se na restinga do Lobito, cavalgando no meio de uma nuvem de pó, e entoando a célebre frase que José Acúrcio das Neves colocara na boca de Dom Miguel: “Segui-me e nunca trilhareis outra estrada que não seja a da honra.”

Vindo de África e deixando para trás uma vida marcada pelas casernas e pelo brilho elegante das suas fardas e colarinhos engomados, o Tio Henrique recolheu-se à casa dos Arcos de Valdevez para se entregar à música, à agricultura e à vida doméstica. As veredas luminosas e pacatas do Minho não o faziam esquecer a vastidão dos planaltos ou das colinas africanas; e, diante das suas recordações de militar, venerando Norton de Matos ou Mouzinho, a comparação deixava-o prostrado, achando que o país estava ocupado por um bando de sicofantas ignorantes e tacanhos.

A Tia Benedita, já naqueles anos condenada a emprestar a sua voz para disciplinar as loucuras da família, não se resignou e tratava-o com respeito e condescendência, tentando chamá-lo à razão e salvar a família do gemido sensaborão e melancólico do oboé. Foi uma dura campanha, mas coroada de sucesso. O Tio Henrique desistiu de compor a sua obra sinfónica e, em troca, periodicamente, alguém se dispunha a cabecear, ensonado, enquanto o velho herói das pontes militares de Benguela narrava as suas aventuras ultramarinas. Ele seria, se o deixassem tomar a carreira das letras, um escritor perigoso, cheio de figuras de estilo e de tons épicos que deixariam Garrett humilhado a um canto. Cito Garrett por tratantice. A família detestava-o.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Junho 2009