domingo, julho 26, 2009

Almada e Dantas: um combate entre o velho e o novo

O velho Doutor Homem, meu pai, era o nosso fiel da balança. Em quase tudo ele introduziu um módico de sensatez e de morigeração – o que não o impedia de alimentar as suas obsessões nem as excentricidades com que nos habituou a anunciar-se pela vida fora como o melhor de todos nós.

Uma das questões versava o Dr. Júlio Dantas, uma figura respeitável e muito mais elegante – ou ‘dandy’ – do que o dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as botas, os fatos, as gravatas, os punhos e os sobretudos do antigo catedrático de Coimbra chegavam a Lisboa directamente da “Saville Road de Santa Comba Dão”. Na sua juventude, ele estivera várias vezes em Londres – de onde, no dizer do meu avô, que nunca lera Kingsley Amis, vinha tudo o que era preciso conhecer: literatura, imprensa, economia e ideias políticas. O velho Doutor Homem, meu pai, acrescentou-lhe a moda, comprada com parcimónia mas entusiasmo em Saville Road: as malhas dos ‘cardigans’, o ‘tweed’ (com que só rivalizava o irlandês, de Donegal), os sapatos, os chapéus, as abotoaduras de colarinho, as peúgas e, naturalmente, o tecido das camisas e o corte perfeito dos fatos, que ele introduziu no catálogo do alfaiate de família, que ficava nos Clérigos. A verdade é que alguns desses cortes, fatos, cachecóis e ‘cardigans’ continuam actuais e, correndo o risco de surpreender a minha sobrinha Maria Luísa, permanecem a uso.

O Dr. Júlio Dantas era considerado um modelo de elegância – um dândi na política como na literatura. Na verdade, nenhuma das coisas eram muito apreciadas na família, sobretudo quando se falou no Nobel para Dantas. A ironia dos Homem transformava-se frequentemente em crueldade e sarcasmo carregado de altivez, e nenhuma das obras do editorialista era especialmente prezada, embora nenhuma delas entrasse no índex das nossas bibliotecas. O pobre Dr. Dantas ficou conhecido da minha sobrinha e creio que de toda a sua geração, justamente, apenas pelo ‘manifesto de Almada Negreiros’ – um monólogo desconjuntado e risonho escrito na juventude por aquele que viria a ser um admirador do dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, que apreciava a pintura de Almada, dizia que a História havia de vingar-se e um dia alguém teria de redescobrir o talento de Dantas.

A eternidade, mais do que os deuses, escreve direito por linhas tortas. Num dos seus encontros na baixa lisboeta, conta-se que o Dr. Júlio Dantas murmura, depois de ter sido cumprimentado pelo iconoclasta: “Este Almada, sempre tão velho, coitado!”

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Julho 2009

domingo, julho 19, 2009

Variações de Moledo sobre a caligrafia de outrora

Os meus sobrinhos-netos manuseiam a internet como se tivessem nascido de um computador e mostram-me como eu pertenço ao século XIX, a um mundo em que a palavra “estonteante” só raramente estava relacionada com a palavra “velocidade”.

Quando, há dez anos, iniciei as minhas desventuras como cronista eu tinha dificuldade em encarar a palavra “fax”. Eu escrevia em folhas brancas, imaculadas, que depois D. Elaine (a governanta deste eremitério de Moledo) transportava até à estação de correios para serem enviadas por fax. A caneta Parker, herdada do velho Doutor Homem, meu pai, e que servira para celebrar o seu contrato de casamento com Dona Ester, minha mãe, acompanha-me desde então como a fiel pluma que alimenta a vaidade de um velho.

A minha sobrinha Maria Luísa pensou, na época, em instalar um aparelho de fax em casa, ao canto da biblioteca. Fê-lo apesar dos meus protestos sem entusiasmo – no fundo, eu apreciava a “era da velocidade”. Periodicamente, ao fim-de-semana, transportava consigo um computador para onde copiava diligentemente os meus textos, terminando a operação com um clic e um estalinho nos dedos, anunciando que “a crónica já foi”, como se a Internet tivesse nascido no mesmo dia em que aprendeu a juntar letras. Ela nutria alguma ternura pela minha letra de antigo advogado, mas sopesava os argumentos e achava-me capaz de aprender “a técnica dos computadores”.

O meu problema foi, sempre, a vetusta Parker de tampa lacada; com a caneta vinha, também, o tinteiro recarregável (a velha papelaria de Viana do Castelo continua a providenciar-me a tinta Waterman de há quarenta anos), o mata-borrão e as folhas de papel que já estão fora de moda. Eu aprendi a escrever em folhas de papel almaço com dobra na margem esquerda. A minha pena tinha aparos para susbstituir todas as quinzenas. As folhas de mata-borrão eram cor-de-rosa e cabiam numa pasta que se guardava numa escrivaninha. O meu mundo prolongava-se em objectos que anunciavam a sobrevivência dos regimes, as raízes da família, a memória da velha caligrafia em que as vogais eram redondas e uma ligeira inclinação da letra significava estilo, carácter, elevação e afeição à escrita. Com o tinteiro, a caneta, o mata-borrão, a folha de rascunho e um sem-número de cuidados, vinham também os lápis afiados, as tiras de papel para anotações e uma velocidade e ritmo moderados. Cada momento de escrita tinha o seu código próprio; tinta preta para a epistolografia, azul para assinaturas de documentos, nada mais. Esse mundo terminou. Os meus sobrinhos-netos escrevem tudo no computador. A memória deixou de ser papel e é agora um fragmento de sílica.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Julho 2009

domingo, julho 12, 2009

Sobre a felicidade que vem nos livros

Nem tudo o que apreciamos, mesmo ultrapassada a moderação, tem importância para os outros. O velho Doutor Homem, meu pai, habituou-nos a esta espécie de máxima barroca como garantia da nossa própria liberdade; se a frase é obtusa (o meu pai lera demasiado Sterne), o princípio é fatal e verdadeiro.

Os que se habituaram à solidão cedo descobriram o prazer que retiram das coisas íntimas – um livro folheado, uma vista sobre os pinhais, a contemplação da velhice, uma biblioteca desordenada. Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito--me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.

Acreditar que destas coisas alguém 'retirará algum prazer' parece-me exagero de egocentrista – o mundo está bem feito como está: com futebol, homicídios, tribunais, historiadores felizes e políticos optimistas. A simples existência desses factores há-de ser decisiva para os que acreditam num mundo mais solitário e mais verdadeiro. A existência humana não foi descoberta pela democracia, e nem todos comungam dos mesmos prazeres.

Os Homem juntaram a sua convicção de conservadores à evidência de um espírito liberal – que não se alimenta do jacobinismo que desgraçou a pátria há duzentos anos. Conservadores e liberais ao mesmo tempo, acreditaram na razão e na prudência; e porque as vicissitudes da história os condenaram a viver no mundo dos derrotados, aprenderam também a arte de fingir que aceitam as coisas como elas são. O velho Doutor Homem gabava à Tia Benedita a dissimulação que a impediu de cair no ressentimento e no ódio; a matriarca da família, como minhota de Ponte de Lima, conhecera as virtudes da ironia e do sarcasmo; o velho causídico optou pela bibliofilia como remédio para não enfrentar a degradação da espécie. Dois caminhos que se encontravam amiúde; nenhum deles queria mudar o mundo (coisa que os afligia e lhes estragava as digestões), nenhum deles impunha aos outros uma moral ou até uma versão do planisfério.

A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco e que as certezas se esvaem com a primeira tempestade de Outono. Devolvo-me aos livros, como de costume. Eles não falam muito.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Julho 2009

domingo, julho 05, 2009

Nós, os ignorados no país de Eça

O cronista dedica-se esta semana a apresentar o livro de Maria Filomena Mónica sobre Eça de Queirós.

Ao ler a biografia de Eça de Queirós, da Doutora Filomena Mónica, relembro que, se em Eça de Queirós há um personagem querido dos Homem, esse é o vetustíssimo Jacinto Galeão, que o senhor D. Miguel apanhou do chão numa tarde soalheira de Benfica. O episódio vem na ‘Cidade e as Serras’. Jacinto Galeão abandona o país mal o príncipe embarca em Sines na direcção do exílio definitivo – e os Homem, para manter um módico de decência e não se fingirem de esquecidos, fizeram o mínimo que podiam fazer: minimizar os estragos, aprender a virtude da derrota e manterem-se afastados da ribalta. Creio que Eça de Queirós trataria amavelmente os Homem dessas eras – como personagens vagamente cómicos, inimputáveis acerca da política, respeitadores da gramática, tratando do jardim e guardando bibliografias. Digamos que a nós, os minhotos do Portugal velho, nos coube a melhor parte de Eça – sermos ignorados.

Nessa época, a nossa família já não lia ‘A Nação’ nem se incomodava com a religião velha ou o casamento civil. Estava retirada. Depois da Maria da Fonte e antes da Patuleia, estávamos preparados para os romances de Eça. O meu avô, administrador de quintas no Douro, tratou mesmo de investigar os pastores anglicanos do Porto, a fim de verificar se existiria algum Craft (como o Craft de ‘Os Maias’) depois de ter conferido que era impossível encontrar o rasto do pai da Sra. Condessa de Gouvarinho. Impossível era encontrar o nosso rasto. Nós, velharias, ficávamos de fora desse país distante que se corrompia e sofria nas páginas de Eça, decompondo-se como personagens de uma farsa ou de uma comédia. Tínhamos sido vencidos há muito tempo; a democracia, a sociedade liberal, não era assunto nosso.

Sinto por ele, Eça, depois de ler a biografia da Doutora Filomena Mónica, a nostalgia que se sente diante das grandes figuras de tragédia – mas uma tragédia silenciosa, surda, alimentada por um desejo profundo de beleza. Uma beleza que não encontrou na Pátria e que colocou nas melhores páginas dos seus romances. Pessoalmente, lamento apenas que Eça não tenha valorizado a Sra. condessa de Gouvarinho, com o seu perfume de verbena e os seus cabelos ruivos, o seu desejo de infidelidade e de romance; naquele mundo corrompido pela política e pelo dinheiro, pela ignorância e pela preguiça, faz falta alguém que genuinamente deseje o pecado e não o disfarce com literatura ou virtudes cívicas.

Derrotados na primeira metade do século XIX e educados pelas catástrofes, julgámos que a eternidade não existia. Esquecemo-nos de Eça.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 de Julho 2009