domingo, agosto 09, 2009

Uma elegia do livro mascarada de elogio

A primeira vez que entrou na casa portuense da família um gira-discos moderno, munido de todos os equipamentos complementares necessários à entrada dos Homem no mundo civilizado, o velho Doutor Homem, meu pai, murmurou qualquer coisa sobre Anna Moffo, a soprano por quem se apaixonara em tempos e de que possuía uma colecção de discos de 78 rotações. O dia ficou memorável porque se escutou uma quase interminável quantidade de músicas populares que fariam corar um melómano. Um dos meus irmãos batalhara, durante semanas, sobre a necessidade dessa aquisição. Ninguém protestou. Nas velhas famílias há sempre um argumento para protelar um gasto excessivo ou extraordinário: é preciso procurar uma data. A data foi a Páscoa de 1967, que coincidia, nesse ano – mais coisa menos coisa – com o aniversário de Dona Ester, minha mãe.

Quarenta anos depois, parece-me que a grande ameaça à velha guarda da família – eu e os vasos de hibiscos guardados com temor na varanda do sul – são os instrumentos com que se lerão os livros do futuro. A nossa vida está comandada pelos ecrãs: o da televisão, o do computador, o do telemóvel e parece-me que muitos outros. Onde, em velhas máquinas outrora modernas, estavam botões que se rodavam, estão hoje materiais sensíveis que, através de ecrãs, exigem um suave toque com a ponta dos dedos. Ler um livro através de um ecrã parece-me uma inevitabilidade. E, claro, um contra-senso. Em primeiro lugar porque os livros do futuro não sabemo como vão ser e se terão frases escritas na nossa língua; em segundo lugar porque, vamos e venhamos, os livros são velharias que dependem apenas da boa vontade de bibliotecários, arquivistas, leitores forçados, leitores impenitentes, gente distraída das coisas do mundo e velhos fora de moda que não leram as mais recentes histórias de vampirismo. O livro é, em si mesmo, um mundo de pó e de contrariedade. Na biblioteca de Moledo, o livro continua a ser um mundo de pó que Dona Elaine, a governanta do eremitério, não consegue comandar nem extinguir.

O tio Alberto, bibliómano de São Pedro dos Arcos, dedicava aos livros (livros velhos, livros novos, papel pintado e impresso) a atenção que não dedicou a si mesmo. Um leitor preza o passado – não apenas pelos livros em si, mas pelo seu volume, pela sua arte e pela sua divindade.

O mundo de hoje não crê em divindades que não sejam obra sua. O livro pertence a um mundo antes deste. É uma velharia num mundo entregue a adolescentes que nem da adolescência conservam as borbulhas e as espinhas no rosto.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Agosto 2009