domingo, setembro 20, 2009

O Outono, a Espanha e as ostras da época

O Tio Alberto, bibliófilo, jurista, botânico e gastrónomo de São Pedro dos Arcos, tinha o costume de passar alguns dos seus dias de Outono na Galiza, ora embrulhado numa manta diante das correntes do Cantábrico, ora de botas calçadas a percorrer os penhascos da Costa da Morte. O hábito tinha a ver com as ostras de Ribadeo e da costa do Ferrol (na altura mencionada como El Ferrol del Caudillo), que se despediam da humanidade nesta altura do ano. O velho Doutor Homem, meu pai, serviu-se várias vezes do seu apetite pelas ostras para rumar à Corunha, a fim de se encontrar com o Dr. Cunha Leal (cerimonial que foi interrompido quando viu Afonso Costa na cidade), então exilado na costa galega. Para evitar dissabores à Tia Benedita, guardiã do miguelismo familiar, o causídico deixou que ela pensasse que se tratava, digamos, “de mulheres”. Tudo teria sido preferível a um contacto, mesmo visual, com o demagogo da República. Já na minha juventude, Vigo e os tabacos canarinos e cubanos eram um pretexto para visitar a Galiza sob um pretexto meramente comercial.

Nesse período, o Tio Alberto deixava-se tentar pelo seu espanholismo. Na época não se falava de “iberismo”, uma tentação política muito actual. Não, o Tio Alberto não era nem seria iberista – ele era, antes, “espanholista”. Ou seja: gostava de Espanha. Gostava das aguardentes, das ‘queimadas’, das ostras galegas, das paisagens, da língua – e privou com D. Álvaro Cunqueiro, o autor de “La Cocina Cristiana de Occidente”e de “Tertulia de Boticas Prodigiosas y Escuela de Curanderos”, além de ter cozinhado para Camilo José Cela um almoço de sardinhas fritas e ovos com chouriço.

Gostar de Espanha não significa, necessariamente, que se queira ser espanhol. É essa a diferença entre o Iberismo e o “espanholismo”. Onde um “espanholista” admira Cervantes, as “paellas”, os “mesóns” perdidos nas montanhas, Goya e Velázquez, o “soleá” sevilhano ou as senhoras de Calatayud (além das canções de D. Rocío Jurado), o defensor do Iberismo quer ser cidadão de Valladolid ou de Múrcia ou votar num político de Alicante, o que não constitui uma vantagem para quem nasceu em Ponte de Lima ou na ilha do Corvo, lugares aprazíveis e civilizados. Um “espanholista” tem saudades das lojas de Ultramarinos e da Plaza Mayor de Salamanca. Um iberista quer ser atacado à bomba no país basco e pagar impostos numa repartição de Badajoz.

Um tio do velho regime, depois de roubar uma noiva à porta da igreja dos Arcos, fugiu com ela para Espanha para casarem no Lugo. É isso que Espanha tem de ser: um refúgio.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Setembro 2009