domingo, janeiro 31, 2010

O regicídio, o heroísmo e a geração desiludida

A Tia Benedita foi contemporânea do regicídio e soube da notícia no próprio dia, ao crepúsculo gelado de Ponte de Lima. O seu pai, nosso avô Álvaro Jorge, era uma espécie de cartista da “geração desiludida”, convertido ao regime por um conjunto compreensível de inevitabilidades – a principal das quais tinha a ver com o facto de não ser possível regressar a 1800, e, não podendo fazê-lo, era preferível viver depois de 1860 do que na década de trinta do século XIX, em guerra civil permanente.

O leitor supõe, depois de ter lido dois ou três manuais de História Pátria, que a República tem, a coroá-la (imagine-se), as grinaldas do heroísmo e do progresso. A isto nos habituou o tempo, divulgando essa imagem da felicidade perpétua dos comerciantes da Baixa Pombalina e dos caixeiros da Rua Fernandes Tomás, rodeados de bustos seminus da República e de réplicas do avião em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral rumaram ao Atlântico Sul. Esse misto de bonomia, acasos felizes e economia triunfante, porém, nunca existiu. Passados quarenta e, mesmo, cinquenta anos, a Tia Benedita continuava a acreditar que o dr. Afonso Costa viria pelo Minho fora incendiar seminários e roubar o tesouro de Sta. Marinha da Oliveira. Em vão o velho Doutor Homem, meu pai, lhe lembrava que o demagogo morrera entretanto; seja por desconfiar da informação, seja por acreditar na vida eterna, a senhora não desarmava, e tornou-se muito mais reaccionária do que – na realidade – era ou podia ser.

Este espectáculo burlesco de miguelistas fora de tempo, de cartistas vivendo os dramas da apostasia e de ‘liberais’ durante o Estado Novo, acompanhou sempre as minhas memórias da família. Parte da Pátria, no entanto, não compreendeu que não pode voltar atrás – nem a 1800 nem a 1908 – e entretém-se a louvar o regicídio, que agora se assinala como um prelúdio da República.

Nesta altura do ano, a minha sobrinha Maria Luísa transporta-me, no meio do frio, entre a geada e a neblina, a São Miguel de Ceide e à casa do velho bruxo da nossa literatura. Também ela faz parte de uma “geração desiludida”. Educada no respeito por todas as revoluções, foi compreendendo – ao longo dos últimos anos – que elas não devoram apenas os seus filhos, como o tempo. Devoram também a história dos seus heróis, até que as suas páginas revelem as indignidades e a cobiça do costume, além da sombra de maldade que atravessa as melhores ideias. Camilo, nas penumbras de Ceide, ainda ri dos heróis de 1830.

in Domingo - Correio da Manhã - 31 Janeiro 2010

domingo, janeiro 24, 2010

Sobre Nostradamus e o fim do mundo

A Tia Benedita achava que Nostradamus era um intrujão. A senhora não tinha, evidentemente, lido as 6338 previsões do astrólogo francês – em primeiro lugar porque não tinha paciência para sistemas complexos ou presságios de almanaque; em segundo lugar, porque acreditava que Nostradamus estava no Índex e não valia a pena reavaliar paranóias estrangeiras. Mesmo sobre o Bandarra, a quem uma vez se referiu como "o trapaceiro", a matriarca dos Homem era severa e céptica – se bem que o achasse conveniente por motivos políticos, revelando ter aprendido bem a lição dos Homem de várias gerações, que souberam (com rara sabedoria) distinguir a finalidade da substância. Problemas metafísicos que nunca entraram nos corredores do casarão de Ponte de Lima, onde a única presença do Além era o retrato do senhor Dom Miguel, estacionado para provar que a família tinha memória e conhecia a gratidão e a honra.

A falar verdade, a Tia Benedita acreditava que o fim do mundo já tinha acontecido, não como um apocalipse (um arcaísmo) mas como um conjunto de sinais, entre os quais se juntavam o dr. Afonso Costa, o samba, o ié-ié, as bainhas das saias de Mary Quant e a Concessão de Évora-Monte. O Juízo Final viria a caminho, mas já anunciado pelas torpezas que se sabe. Diante disso, ela reunia uma colecção de heróis, aventureiros, ascetas e até bandoleiros que lutavam contra a inevitabilidade da desgraça, entre os quais se contava tanto o seu avô materno como José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido. A família tolerava-a com bondade e paciência, mesmo com ternura, poupando-se a explicar-lhe que a Tabela Periódica não tinha sido obra da Maçonaria ou que o príncipe proscrito nunca esteve em Braga depois de ter partido – para sempre – na direcção de Génova.

Estas excentricidades não a afastavam das realidades terrenas, que ela considerava com uma certa magnanimidade, uma vez que o mundo tinha terminado. Pelo menos o seu mundo. Às vezes imagino como seria esse mundo – e não encontro sinais dele senão em parágrafos de Camilo ou de D. Agustina. A Tia Benedita era uma espécie de Ana de Cales, a sibila severa e obscura de ‘Os Meninos de Oiro’, defendendo a sua tribo do adultério, da pobreza e da infelicidade que trazem as "coisas modernas". Hoje em dia seria uma luta de vida ou morte, boa para as províncias de há trinta ou quarenta anos, quando não se comentavam os divórcios nem se achavam milagres os triunfos da medicina. Vendo bem, ainda hoje refaço à mão as contas da calculadora usada por Dona Elaine – a governanta do eremitério de Moledo – para conferir as compras do mês. Um conservador é céptico até ao fim.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Janeiro 2010

domingo, janeiro 17, 2010

Invocação de Nelson, o bardo de Copacabana

Camilo e Nelson Rodrigues foram dois dos grandes reaccionários da nossa Língua, de cada um dos lados do Atlântico – e cada um à sua maneira. Descobri Nelson Rodrigues por acaso, quando o destino e me levou até ao Rio de Janeiro em busca de cura para males de que julgava padecer (e, comigo, minha mãe, Dona Ester). Para o nosso conservadorismo lusitano (e para o da minha família), Nelson Rodrigues seria um porta-bandeira da imoralidade, do desatino e das poucas vergonhas que chegavam do Brasil. Envergonhados, nunca soubemos apreciar devidamente o génio de Nelson Rodrigues e do seu sofrimento, comparado ao de um adolescente puro rodeado de pecado, como São Jorge sitiado pelos dragões.

A Tia Benedita nunca o teria compreendido; o velho Doutor Homem, meu pai, conservador de veia inglesa, determinaria que fosse catalogado entre os plumitivos, na barra dos polemistas morais. E, na verdade, a impressão que me causou Nelson Rodrigues, de que me tornei leitor no final da década de cinquenta e durante toda a década de sessenta, foi a de uma explosão de vida no labirinto da nossa piedade. Uma piedade que cercava toda a nossa vida e a tomava de empréstimo como se fosse coisa sua.

A minha sobrinha Maria Luísa não gosta do título de um dos seus livros, ‘O Reaccionário’. Mas era assim que Nelson Rodrigues era conhecido e tratado – não só porque as esquerdas o odiavam mas, também, porque as direitas o desprezavam. Ele tratava das coisas miseráveis da nossa vida. Tratava da pureza, da inocência do amor, da desilusão que tomava de empréstimo todas as utopias da política.

Mesmo não apreciando o título, Maria Luísa descobriu nele a vitalidade de um jornalista que escrevia sobre o fio da navalha, sobre os abismos, sobre a banalidade e a maldade. Só pude compreendê-lo inteiramente porque respirei as brisas de Copacabana, o seu espavento de velocidade e de plebeísmo, o seu perfume de imoralidade e romantismo. Em Portugal não poderíamos entendê-lo na época e só podemos, hoje, tratá-lo como um acontecimento de museu.

Ninguém como ele falou do pecado e do arrependimento, da culpa e da alegria, com aquela simplicidade banal e eléctrica dos autores que não têm tempo de voltar atrás para verificar a gramática. Fez-nos falta um Nelson Rodrigues que tivesse ensurdecido o túmulo em que se transformou o conservadorismo português, com os seus arrebiques e fardas. Mas, se ele tivesse existido, ali estaríamos, na primeira linha, escandalizados e de gramática na mão, perseguindo-o aos pinotes.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Janeiro 2010

domingo, janeiro 10, 2010

A ortografia pátria e os poliglotas da casa (2)

O que assusta mais gravemente na mudança ortográfica não são as alterações propriamente ditas, que eu deixo para o dr. Graça Moura e para os fonólogos e tipógrafos – mas a euforia pela mudança, propriamente dita. Esse é o sinal dramático das coisas que nos esperam: um mundo relativamente mais perigoso do que este, muito mais absurdo do que o de ontem, e certamente mais inexplicável.

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que os técnicos municipais de trânsito eram os culpados do desconcerto do mundo porque lhe alteravam, com alguma frequência, a geografia das ruas com sentido proibido ou a lógica da entrada em rotundas nos subúrbios – que na altura eram muito menos numerosas do que hoje. Ele achava, não sem alguma razão, que os cavalheiros do trânsito, mancomunados com oficiais de cartografia (além de empresas de obras), percorriam o país em busca de ruas em que os carros circulavam sem problemas ou estacionavam com alguma circunspecção. Descobertas as avenidas, as ruas, as pracetas, as transversais e perpendiculares – todas a funcionar com uma regularidade aceitável – tratava-se de proceder às necessárias alterações para que houvesse, no prazo mais curto, obras, lixo, poeira, máquinas em manobras e, finalmente, problemas no trânsito. As várias classes profissionais rejubilavam, finalmente, porque tinham conseguido obter algum sucesso no seu trabalho: não só tinham sido chamadas “a concorrer para a mudança”, como tinham mesmo “mudado”. Que o resultado fosse ou uma duvidosa melhoria ou um desastre substantivo, o essencial estava feito: tínhamos mudança, tínhamos obras, tínhamos progresso. Esta santíssima trindade pode ser observada no nosso país com a infalível regularidade de um pêndulo fabricado em Vila Nova de Famalicão.

O mesmo ocorre nos dicionários. Um bando de adolescentes usa uma palavra categoricamente defeituosa e inestética? Que se introduza no Dicionário da Academia. Alguém deforma uma expressão, uma interjeição que seja, uma operação sintáctica, um advérbio? Que as gramáticas procedam às mudanças devidas. Há um acento que prejudica a frequência da internet? Que se exclua.

Mudar é um vício nacional. Não há cidadão, munido do seu Bilhete de Identidade, do seu guarda-chuva, do seu génio, que não deseje ardentemente uma mudança que cause problemas. Creio que isto se explica pela necessidade trágica e patriótica de chamar a atenção para a dificuldade de viver em paz e com alguma constância.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Janeiro 2010

domingo, janeiro 03, 2010

Luz e melancolia no Ano Novo

Nunca esperei chegar onde cheguei: a 2010. Escrevo ainda em 2009, mas a velha caneta Parker, herança que recebi do velho Doutor Homem, meu pai – e que serviu para consignar o registo do casamento com Dona Ester, minha mãe –, puxa-me para o novo ano. Ela continua, gastadora e melancólica, aproximando-se das margens da folha pautada que, semanalmente, no jornal, a Dra. Fernanda Cachão ou o Dr. Paulo Fonte decifram aquilo que chamam crónica e que a minha sobrinha Maria Luísa recomenda aos amigos mais íntimos como “um romance”. Compreendo a classificação: coisas que um velho escreve são romance; a juventude pede outras designações corredias, nascidas depois de D. Agustina ter escrito ‘Os Meninos de Ouro’ e muitos anos depois de ‘Mau Tempo no Canal’ querer ter sido uma espécie de ‘Monte dos Vendavais’ das ilhas.

Tenho por esta Parker uma dedicação corroída pela melancolia. Foi com ela que iniciei – há dez anos irregulares – a minha actividade de cronista, que aumentou generosamente a minha vaidade do eremitério de Moledo. Num longínquo Outono carioca no final dos anos cinquenta, foi recuperada pelo recepcionista do Hotel Glória, o mesmo que comprava as aspirinas para o presidente Juscelino Kubitschek (eu, distraído, tinha-a abandonado num táxi onde ficara o meu coração adolescente, embalado pelo perfume de uma paixão que nunca desapareceu). Desde aí nunca me separei dela para que, mais tarde, assinasse contratos, declarações jurídicas, cartas para amigos que entretanto partiram, contabilidade doméstica, inventários de uma biblioteca desordenada – enganando-se sempre na transição do ano, escrevendo sempre o ano anterior já a meio de Janeiro do novo.

Cheguei até aqui, onde nunca pensei chegar. A falar verdade, já não tenho melancolia. Em vez dela, os alertas das coronárias, o reumatismo, os males de rins, a visita semestral ao meu médico de Viana, a quem devo a imerecida longevidade com que agora flagelo o leitor.
Há dois anos que neste jornal me intrometo na vida dos leitores. Sou um intruso. A minha família guarda um retrato do senhor Dom Miguel e as colecções do ‘Minho Pittoresco’. Releio Camilo com o prazer de um adolescente – e o leitor há-de achá-lo uma velharia. O mar de Moledo continua a encantar-me. Não conservo nenhuma amargura.

Numa das suas ‘Novelas do Minho’ (‘O Degredado’), Camilo, justamente, fazia o resumo: “Seja como for, lá vamos todos para a posteridade.” Digo isto porque chove bastante. Uma semana atrás da outra, resta-me esperar a Primavera.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Janeiro 2010