domingo, janeiro 03, 2010

Luz e melancolia no Ano Novo

Nunca esperei chegar onde cheguei: a 2010. Escrevo ainda em 2009, mas a velha caneta Parker, herança que recebi do velho Doutor Homem, meu pai – e que serviu para consignar o registo do casamento com Dona Ester, minha mãe –, puxa-me para o novo ano. Ela continua, gastadora e melancólica, aproximando-se das margens da folha pautada que, semanalmente, no jornal, a Dra. Fernanda Cachão ou o Dr. Paulo Fonte decifram aquilo que chamam crónica e que a minha sobrinha Maria Luísa recomenda aos amigos mais íntimos como “um romance”. Compreendo a classificação: coisas que um velho escreve são romance; a juventude pede outras designações corredias, nascidas depois de D. Agustina ter escrito ‘Os Meninos de Ouro’ e muitos anos depois de ‘Mau Tempo no Canal’ querer ter sido uma espécie de ‘Monte dos Vendavais’ das ilhas.

Tenho por esta Parker uma dedicação corroída pela melancolia. Foi com ela que iniciei – há dez anos irregulares – a minha actividade de cronista, que aumentou generosamente a minha vaidade do eremitério de Moledo. Num longínquo Outono carioca no final dos anos cinquenta, foi recuperada pelo recepcionista do Hotel Glória, o mesmo que comprava as aspirinas para o presidente Juscelino Kubitschek (eu, distraído, tinha-a abandonado num táxi onde ficara o meu coração adolescente, embalado pelo perfume de uma paixão que nunca desapareceu). Desde aí nunca me separei dela para que, mais tarde, assinasse contratos, declarações jurídicas, cartas para amigos que entretanto partiram, contabilidade doméstica, inventários de uma biblioteca desordenada – enganando-se sempre na transição do ano, escrevendo sempre o ano anterior já a meio de Janeiro do novo.

Cheguei até aqui, onde nunca pensei chegar. A falar verdade, já não tenho melancolia. Em vez dela, os alertas das coronárias, o reumatismo, os males de rins, a visita semestral ao meu médico de Viana, a quem devo a imerecida longevidade com que agora flagelo o leitor.
Há dois anos que neste jornal me intrometo na vida dos leitores. Sou um intruso. A minha família guarda um retrato do senhor Dom Miguel e as colecções do ‘Minho Pittoresco’. Releio Camilo com o prazer de um adolescente – e o leitor há-de achá-lo uma velharia. O mar de Moledo continua a encantar-me. Não conservo nenhuma amargura.

Numa das suas ‘Novelas do Minho’ (‘O Degredado’), Camilo, justamente, fazia o resumo: “Seja como for, lá vamos todos para a posteridade.” Digo isto porque chove bastante. Uma semana atrás da outra, resta-me esperar a Primavera.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Janeiro 2010