domingo, março 28, 2010

Um pobre botânico entre bárbaros ao acaso

A botânica limiana foi um mistério que ficou por esclarecer: o emaranhado de videiras de enforcado, de freixos e choupos, de castanheiros na serra e de pinhais à beira da estrada sempre contribuiu para que aquele verde natural se parecesse com um quadro arrumado, como nas estampas inglesas. O velho Doutor Homem, meu pai, nunca se comoveu com a Natureza – não lhe tinha horror, mas desprezava as cantilenas bucólicas e a enumeração de benefícios prodigalizados pelo oxigénio das províncias. Ele, que era sobretudo um homem da cidade, afirmava desconhecer a existência de japoneiras e de magnólias nos jardins do Porto, mesmo se se sentava diante de uma dessas árvores. Tudo o que tivesse uma copa, um tronco e se assemelhasse verdadeiramente a uma espécie botânica era para ele um enigma a contornar com desinteresse.

Durante as férias de Verão em Ponte de Lima, o velho Doutor Homem, meu pai, costumava mesmo pagar cinco escudos a cada neto para que eles arrancassem os gladíolos do jardim, uma das plantas a que a Tia Benedita dedicava alguma devoção (Dona Ester, minha mãe, acreditava que a generosidade do gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas). Refugiado no escritório, ouvindo discos da sua soprano preferida, Anna Moffo, o velho causídico evitava o contacto com os campos e as tarefas de jardinagem, com o argumento de que a Natureza ficava bem na pintura em geral, mas que, vista de perto, tinha inconvenientes.

Pelo contrário, eu fui educado por Dona Ester, minha mãe, na crença de que o ar livre, os areais de Afife, os canteiros da Foz, os pinhais de Viana e as florestas em geral eram contributos para o equilíbrio emocional. Porém, a minha vida como botânico começou muito mais tarde e como uma prova de que a preguiça não tem limites no género humano. Foi a botânica – o conhecimento das espécies, a paixão pela história dos hibiscos ou das gardénias, a perseguição de um exemplar raro – que me permitiu, ao longo da vida, reunir argumentos para não sair de casa, cuidando dos vasos e providenciando sombra e sol conforme as necessidades. O meu tio Alberto, gastrónomo e bibliómano de São Pedro dos Arcos, achava a ocupação “um tanto trapalhona” – também ele, vivendo numa das colinas mais verdes do Minho, tinha pela Natureza um desinteresse notório. Achava que os rios eram interessantes consoante a temporada da lampreia ou da truta; e que as hortas ficavam muito bem enquadradas junto dos povoados.

Quando vejo a copa dos pinhais de Moledo recortadas no céu amedrontado do entardecer, a verdade é que não penso na Natureza. Penso na música. Mas é outro tema.

in Domingo - Correio da Manhã - 28 Março 2010

domingo, março 21, 2010

A pátria sentimental e o mal da literatura

Esta semana, alguém voltou a insistir na “minha obrigação” de “escrever um romance”. Uma parte do país sente essa obrigação, como se a literatura despertasse as suas sirenes com os decibéis afinados, chamando os soldados às trincheiras. E os soldados são, hoje em dia, um extraordinário leque de alfabetizados, capazes de consultar um dicionário de rimas, uma gramática, um prontuário, um folhetim — mas que o não fazem por preguiça, limitando-se a entrar na trincheira e a disparar como lhe parece. Ou seja, “a escrever um romance” (obrigação a que quase toda a classe média lusitana aspira desde que tenha um palco, por mais reduzido que seja) ou a compor um ramalhete de versos (obrigação nacional, equiparável à obtenção do bilhete de identidade, que já se não usa).

A relação dos portugueses com a literatura é de tal forma dedicada que mais de dois terços da população nunca leu um romance e metade dos recenseados nunca leu um livro de versos, para não me referir às leituras úteis, propriamente ditas. Em vez disso, cerca de metade dos herdeiros de Camões e de Junqueiro (o poeta mais desacreditado entre os Homem) já sonharam ser autores de uma colecção de romances e de uma lírica com substância e tamanho; apenas não tiveram tempo, para grande felicidade das bibliotecas, cujo espaço está cada vez mais reduzido, como se lamentava o Dr. Barreto Nunes, que — de Braga — me fazia as suas recomendações.

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que os portugueses escreviam mal porque eram sentimentais e tinham sido governados por vates românticos que desconheciam haver uma relação entre o sujeito, o verbo e o complemento directo. O sentimentalismo português alimentou várias doenças melancólicas e certamente dispensáveis. Em vez da gota, do reumatismo e dos males hepáticos, os portugueses são mais dados a doenças como a poesia lírica e sentimental, a dramaturgia metafísica ou a dedicação a Fernando Pessoa.

Camilo, que sorria de cada vez que se revelava um romântico de laboratório, sabia como era fácil encher de lágrimas os olhos das suas leitoras. Vingava-se com histórias comoventes e rapaces, expondo a sua ternura pelos bandoleiros, pelos padres que bebiam genebra, pelos generais vencidos, pelas aventureiras que sobreviviam nas províncias e pelos legitimistas que nunca reconheceram a concessão de Évora Monte.

Para reconhecer esse génio raro e grave, o país teria de mudar. Não mudou. Preferiu albergar, fabricar e proteger milhares de pequenos funcionários da literatura, criados pelo regime constitucional e defendidos pelo sentimentalismo. Desde então não mudámos muito.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Março 2010

domingo, março 14, 2010

Um sociólogo perdido no coração do Minho

A minha sobrinha Maria Luísa tem uma paixão de pelo menos duas décadas pela sociologia, uma ciência moderna a que atribui virtudes larguíssimas. No meu tempo não havia sociologia mas conhecíamos conceitos muito em voga, como “estatísticas” e “probabilidades”, que vinham da matemática. A sociologia, porém, suscita comentários elogiosos e quase apaixonados, o que contrasta com o cepticismo da família. O velho Doutor Homem, meu pai, admitia tratar-se de uma palavra que misturava, generosamente, ‘socialismo’ com ‘astrologia’. O velho causídico, mesmo tendo sobrevivido ao 25 de Abril, não chegou a conhecer o esplendor da Pátria, povoada de sociólogos.

Desta vez, Maria Luísa sucumbiu, indignada, à revelação – feita por sociólogos americanos – de que o “casamento moderno” tinha menos hipóteses de perdurar do que o “casamento à antiga”. A distinção entre uma e outra forma de casamento são-me relativamente indiferentes, uma vez que, como o leitor sabe, nunca provei o nem o mel nem o fel de qualquer das suas versões. Fui criado rodeado de casamentos tradicionais, à antiga, que terminavam com a viuvez – e, como qualquer pessoa do Porto que tivesse lido os livros de Camilo ou de D. Agustina, cercado de histórias sobre escândalos matrimoniais. Insensível aos benefícios, virtudes e vantagens do casamento, nunca entrei no número dos abençoados, o que fez de mim um monstro que também não conheceu a puericultura nem o maravilhoso mundo do relacionamento com as sogras.

Seja como for, parece que os sociólogos americanos concluíram que as pessoas que “coabitam” antes de se casarem têm mais probabilidades de chegar ao divórcio ao fim de, em média, cinco a dez anos. Maria Luísa acha que isto é propaganda reaccionária, servida nos tempos da igualdade de género, da pílula e da alimentação vegetariana. Lembrei-lhe que se trata de sociologia – e de sociologia feita por sociólogos. “Mesmo assim”, respondeu ela, lembrando que uma estatística é apenas uma estatística, e que uma estatística “não prova nada”. Achei uma boa estratégia: o facto de as coisas serem como são não significa que acreditemos nelas.

Não lhe relembrei os seus três casamentos mas esclareci que a sociologia não foi inventada por mim, que não confio em astrólogos. Há muitos anos que a infinita e menosprezada perspicácia da Tia Benedita, a matriarca reaccionária da família, se tinha adiantado aos sociólogos do século XXI. Mas o conceito de pouca-vergonha, que ela usava, não tinha aplicação científica. Eu sempre apreciei muito a imoralidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Março 2010

domingo, março 07, 2010

Sobre o clima e outras incertezas

Quando havia estações do ano, estávamos por esta altura a preparar a Primavera. Na literatura, a abundância de metáforas e de imagens sobre o assunto prova que a humanidade deposita – de ano para ano – grandes esperanças no mês de Março. Romances há que celebram, de passagem, a tepidez das primeiras tardes de sol depois dos vendavais e das geadas de Inverno; as personagens, reabilitadas pela meteorologia, ficam disponíveis para ultrapassar em desvario os seus criadores; o mundo, digamos, reorganiza-se com a chegada da Primavera, a estação do ano que mais má literatura produziu, tendo em conta as descrições extravagantes que o romantismo perpetuou e que a falta de talento sempre desculpa por misericórdia e preguiça. Mandasse eu, e haveria uma quarentena literária acerca da Primavera e das primeiras tardes tépidas do ano.

No velho Porto havia um requebro no céu, concedo: uma espécie de reconciliação da cidade não com a tepidez da literatura mas com o conforto das casas, com os domingos da Foz, com os crepúsculos mais tardios do rio e com o guarda-roupa que, finalmente, retomava o conceito de meia-estação.

A família sempre prezou os meteorologistas e devotou, durante algum tempo, certa devoção ao dr. Anthímio de Azevedo. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe sobretudo o nome e a dicção, além da forma bondosa com que se referia ao anti-ciclone dos Açores e à costa portuguesa a norte do Cabo Carvoeiro. Já o meu pai, pelo contrário, prolongava o pessimismo antropológico dos Homem ao ponto de imitar a Tia Benedita: mal ouvia as previsões meteorológicas encostava o nariz à janela, ou abria-a de par em par, para contemplar o céu e descortinar os cúmulos de nuvens que ambos interpretavam de acordo com a sua sabedoria de estudiosos do clima minhoto (sobretudo o de Ponte de Lima), o pilar meteorológico por onde todas as previsões deviam, em princípio, alinhar-se.

Tal como os sacerdotes das religiões de outrora, várias coisas serviam para estabelecer as suas previsões meteorológicas, com nítida preferência para os sinais do reumatismo, que anunciavam as mudanças de estação. O velho Doutor Homem, meu pai, enfrentava as agruras do clima com a incerteza de um cáustico e a ironia dos cépticos. O dr. Anthímio, ai dele, não fazia parte das suas referências. Durante meses anotou numa agendinha do Banco Pinto de Magalhães as ocasiões em que o sábio da meteorologia se enganava nas previsões. Era a sua vingança contra a ciência moderna e a mania de as pessoas gostarem da Primavera.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 de Março 2010