domingo, março 21, 2010

A pátria sentimental e o mal da literatura

Esta semana, alguém voltou a insistir na “minha obrigação” de “escrever um romance”. Uma parte do país sente essa obrigação, como se a literatura despertasse as suas sirenes com os decibéis afinados, chamando os soldados às trincheiras. E os soldados são, hoje em dia, um extraordinário leque de alfabetizados, capazes de consultar um dicionário de rimas, uma gramática, um prontuário, um folhetim — mas que o não fazem por preguiça, limitando-se a entrar na trincheira e a disparar como lhe parece. Ou seja, “a escrever um romance” (obrigação a que quase toda a classe média lusitana aspira desde que tenha um palco, por mais reduzido que seja) ou a compor um ramalhete de versos (obrigação nacional, equiparável à obtenção do bilhete de identidade, que já se não usa).

A relação dos portugueses com a literatura é de tal forma dedicada que mais de dois terços da população nunca leu um romance e metade dos recenseados nunca leu um livro de versos, para não me referir às leituras úteis, propriamente ditas. Em vez disso, cerca de metade dos herdeiros de Camões e de Junqueiro (o poeta mais desacreditado entre os Homem) já sonharam ser autores de uma colecção de romances e de uma lírica com substância e tamanho; apenas não tiveram tempo, para grande felicidade das bibliotecas, cujo espaço está cada vez mais reduzido, como se lamentava o Dr. Barreto Nunes, que — de Braga — me fazia as suas recomendações.

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que os portugueses escreviam mal porque eram sentimentais e tinham sido governados por vates românticos que desconheciam haver uma relação entre o sujeito, o verbo e o complemento directo. O sentimentalismo português alimentou várias doenças melancólicas e certamente dispensáveis. Em vez da gota, do reumatismo e dos males hepáticos, os portugueses são mais dados a doenças como a poesia lírica e sentimental, a dramaturgia metafísica ou a dedicação a Fernando Pessoa.

Camilo, que sorria de cada vez que se revelava um romântico de laboratório, sabia como era fácil encher de lágrimas os olhos das suas leitoras. Vingava-se com histórias comoventes e rapaces, expondo a sua ternura pelos bandoleiros, pelos padres que bebiam genebra, pelos generais vencidos, pelas aventureiras que sobreviviam nas províncias e pelos legitimistas que nunca reconheceram a concessão de Évora Monte.

Para reconhecer esse génio raro e grave, o país teria de mudar. Não mudou. Preferiu albergar, fabricar e proteger milhares de pequenos funcionários da literatura, criados pelo regime constitucional e defendidos pelo sentimentalismo. Desde então não mudámos muito.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Março 2010