domingo, maio 02, 2010

Algumas observações sobre contabilidade

O velho Doutor Homem, meu pai, como muitas pessoas da geração, tratou de várias falências. Especializado em direito bancário, parte do seu trabalho era dedicado a acompanhar as minudências da vida de empresas e de uma ou outra fortuna; de qualquer modo, não estava imunizado contra a vetusta inclinação para o escândalo própria das cidades burguesas do século XIX. Tirando o vintismo revolucionário, que ele achava uma extravagância própria da época, o velho causídico nunca deixou de ser um homem do Porto burguês e confortável, bem alimentado e com uma natural tendência para a ironia e o individualismo.

De modo que as falências eram atribuídas ao que hoje se chama “má gestão” ou a desvarios de mau proprietário – que iam do mau uso do dinheiro até à quebra de compromissos bancários, passando pela prática do adultério (que, aos poucos, esgotava as bolsas mais recheadas) ou pela tendência para gastos estapafúrdios numa cidade habituada à morigeração e à parcimónia. Um dos meus sobrinhos, que dedica o seu tempo e inteligência aos mistérios da economia (uma ciência que o tempo aproximou, cada vez mais, da cartomancia e da astrologia divinatória), não compreende esta teoria e atribui-lhe a origem do “provincianismo português” em matéria de negócios; como já ouvi falar de “falências criativas” e de uma prática alquímica designada por “engenharia financeira”, suponho que há um fundo de verdade nisso, mas duvido muito: o género humano habituou-se a um certo número de vícios relacionados com o dinheiro, e não é provável que tenha mudado tanto nos últimos cem anos.

Se bem que várias vezes tivesse considerado o dr. Salazar como um produto deteriorado do conservadorismo português, o velho Doutor Homem, meu pai, achava duas coisas suplementares: a primeira, que não existia conservadorismo português (ele acreditava que só havia conservadores em Inglaterra); a segunda, que esse conservadorismo, para não ir mais longe, era o resultado da ignorância sobre como o mundo funcionava para Leste de Vilar Formoso e Norte de Valença – e uma degenerescência do analfabetismo religioso. Falo do dr. Salazar porque ele tinha uma visão simples e fácil do modo como se evitavam as falências, resumida no seu modo de dirigir o país: mão de ferro e contabilidade de instrução primária. Hoje, já ninguém se contenta com isso e fala-se da falência da pátria como de uma inevitabilidade. O velho Doutor Homem, meu pai, desprezava o dr. Salazar mas achava que o seu espírito de contabilista tinha alguma razão de ser e que não se devia gastar mais do que se ganha.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Maio 2010