domingo, junho 20, 2010

A máquina a vapor e a melancolia do rinoceronte

A biblioteca dos Homem conserva em razoável estado alguns volumes preciosos que fazem parte da história da família e dos seus pecados políticos. Estes pecados, como o leitor entenderá, prolongaram-se durante muitos anos e vão até ao primeiro quartel do século anterior, altura em que, exaustos e conformados, nos dedicámos à sobrevivência, à bibliofilia, ao arroz de pato e à anglofilia, embora não por esta ordem. Crê-se que, com a instalação da República – e um pouco depois dela –, já não valia a pena tentar explicar às novas gerações que a História tinha defeitos na forma como tinha sido escrita. Definitivamente, éramos os derrotados. A família, mesmo conservando as diferenças habituais manteve a tentação (repetida várias vezes até ser impossível enumerá-las) de ficar no lado errado da História. Isto, que poderia ter favorecido a melancolia e o ressentimento, acabou por fazer de nós seres orgulhosos, pacíficos e, surpreendentemente, sem úlceras.

Essa bibliografia reaccionária repousa em Ponte de Lima, tranquila, e ilustra as paredes de algumas salas e de um corredor onde – ao fundo – se encontra a cópia restaurada e perfeita de um retrato do senhor Dom Miguel. No Verão passado, dada a minha qualidade de almoxarife dessas estantes, trouxe para Moledo os ‘Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos’, de José Acúrsio das Neves, um livrinho de 1826 onde, à mistura com curiosidades do seu tempo, enumera as vantagens da introdução da máquina a vapor. O país merecia-o, certamente. Ocupado em batalhar pela Carta, pelas cortes de Lamego e pela constituição de 22, o país não estava desperto, ainda, para a necessidade da máquina a vapor e o dinheiro disponível estava reservado para a tropa.

O meu interesse no assunto é residual e apenas tem a ver com a nostalgia do que poderia ter sido o país. É essa a nossa principal melancolia, passando em revista os últimos duzentos anos ou, indo mais atrás, até à embaixada de D. Manuel ao Papa, comandada por Tristão da Cunha, uma exibição das riquezas do império e onde havia animais de África e da Índia — mas não o exemplar de um rinoceronte que ficou para trás, doente. A nossa verdadeira melancolia é a do rinoceronte (Albrecht Dürer gravou-o para nossa glória) que nunca chegou a pisar o chão de Roma. Depois disso houve o que houve, chegaram as invasões francesas, a partida da corte para o Rio, o Ipiranga e a Concessão de Évora Monte. A nossa nostalgia não termina. Podíamos ter sido tudo o que deixámos para trás.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Junho 2010

domingo, junho 13, 2010

Uma breve viagem ao século passado

O tio Alfredo Augusto só regressou do Pernambuco depois da morte da Tia Benedita e do dr. Salazar. Não havia relação entre o primeiro facto e os outros dois. Emigrante e desolado, partiu para o Brasil aos vinte e seis anos e regressou aos sessenta e cinco – durante esse tempo veio a Portugal quatro vezes, uma delas coincidindo com a visita do presidente Kubitscheck a Lisboa, com quem se cruzou em Óbidos por mero acaso.

Em Julho de 1970 começaram a chegar a Afife os caixotes que transportavam uma vida em secções – recordações dos trópicos, loiça europeia que viajara duas vezes pelo Atlântico, poeira de quarenta anos dedicados à cana de açúcar e ao café e uma reserva de charutos de capa escura que daria para outros quarenta anos de imigração nos sertões do Brasil. O Tio Alfredo Augusto foi o único agricultor da família e aquele que mais tempo resistiu aos trópicos mas a verdade é que vivia noutro país; a Tia Benedita desconfiava tremendamente do Brasil que, na sua avaliação, era uma nódoa de lascívia e a causa de todos os males que atravessaram o século dos seus pais e avós, deixando a pátria entregue aos inimigos do trono e do altar. Trata-se de uma injustiça que o tempo não reparará.

Quando, dois meses depois, tinham já sido desalojados todos os bens que chegaram nesses caixotes, o tio Alfredo Augusto atravessou o mar de avião, depois de, durante um mês em Copacabana, liquidar quarenta anos de vida, trocando-os por papéis bancários e títulos de investimento que com o tempo perderam qualquer interesse e utilidade. Só então regressou à pátria, exactamente como os antigos brasileiros torna-viagem do século passado, ao lado de um séquito muito reduzido de criadas que o acompanhou até ao fim da vida e que, aos domingos, lhe preparava guisado de quiabos e abóbora com carne seca. Os seus fatos largos, tropicais, os chapéus, os charutos, a rede que acolhia as suas sestas numa varanda, e um resto de sotaque que nunca perdeu totalmente – tal era o conjunto reunido da herança brasileira da família. Morreu tranquilamente em 1983 mas o seu testamento tinha sido entregue, muito antes, aos cuidados do irmão e advogado de sempre, o velho Doutor Homem, meu pai, que o considerava um homem honrado. Nele, deixava uma boa parte dos bens (na altura, ainda consideráveis), acumulados ao longo desses anos de trópicos, às criadas que tinham cuidado da sua gota, do seu estômago e da sua solidão.

Era uma figura de romance. Nunca soubemos nada da sua vida. Ainda hoje acreditamos que não teve amores, nem doenças, nem descendência. Desapareceu como poeira.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 de Junho 2010

domingo, junho 06, 2010

Elogio da melancolia e de um oboé perdido

O meu racionalismo – que percorre a família como uma maldição anti-romântica – não apagou o prazer de ver bandas de música percorrendo, ao calor do Verão, as ruas do Minho. No fundo, tanto o velho Doutor Homem, meu pai, como Dona Ester, minha mãe, nos educaram na presunção de que, embora tenha de existir uma vida depois da morte (caso contrário, nada disto valeria a pena), convém não desperdiçar o que esta nos providencia. A ideia é tão banal como haver estações do ano e uma finalidade para todas as coisas; uma das finalidades do Verão é uma vez por ano peregrinamos até aos arredores dos Arcos de Valdevez, onde para visitar os escombros do que foi a vida do Tio Henrique, um virtuoso do oboé, instrumento que resumia toda a sua melancolia.

No calor de Verões antigos, quando as estradas do Minho eram estreitas e ocupavam pouco espaço numa paisagem verde e generosa, o oboé do Tio Henrique (um ex-militar que prezava Mouzinho e as campanhas de África, a que atribuía um papel civilizador largamente exagerado) era o próprio coração da melancolia. Nessa escala, comparava-se aos velhos discos de Anna Moffo, a soprano favorita do velho Doutor Homem, meu pai, que produziam nostalgia a rodos pelos corredores do casarão de Ponte de Lima.

A melancolia é coisa de gente civilizada. Não existe, aliás, civilização que se preze sem uma certa cultura da melancolia, que funciona como um freio à risota que nos deixa sem destino; ela acalma os sentidos, treinando-os e despertando-os, abrindo sulcos nas memórias e nas genealogias, perfumando de beleza as coisas que passam.

A minha sobrinha Maria Luísa, a assaltante mais assídua da minha biblioteca, ficou perplexa com a existência de um exemplar da ‘Anatomia da Melancolia’, de Robert Burton, com as suas 1500 páginas distribuídas pelos dois volumes de uma edição popular que o velho Doutor Homem, meu pai, trouxe de Inglaterra. Expliquei que a melancolia era uma matéria antiga e que o livro (que durante muito tempo foi apenas considerado um manual sobre doenças mentais) era de 1621.

Até a Tia Benedita, que nunca leu Shakespeare nem conhecia o nome de Burton, era inteligente o bastante para compreender que o medo da melancolia era o medo verdadeiro (tirando a República e o fantasma do dr. Afonso Costa, nada a atemorizava) – o medo de as pessoas ficarem um pouco diante de si mesmas, cultivando os gladíolos do jardim. O velho Doutor Homem, meu pai, detestava gladíolos, mas admirava a Tia Benedita, que nunca disfarçou a melancolia que lhe provocava o retrato do senhor Dom Miguel, resguardado da risota no casarão limiano.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Junho 2010