domingo, agosto 15, 2010

O que fica depois de tudo

A minha sobrinha Maria Luísa anunciou que queria estudar o século XIX. O propósito é nobre mas, atendendo à estação do ano, parece-me ligeiramente estapafúrdio: no século XIX, e no início do XX, os verões eram recebidos com um guarda-roupa desmobilizador e ainda não havia época balnear.

Na nossa família, só Dona Ester, minha mãe, afrontou os costumes – ela acreditava que iodo, sol, pele bronzeada e areia espalhada pelo corpo eram indícios de uma saúde férrea que nos imunizaria contra o romantismo que sobreviveu à República e que tanto produzia bacharéis para as secretarias como clientes para os sanatórios. Um dos seus antepassados era um desses poetas que saudava os crepúsculos e as belezas pálidas do seu tempo (viveu em Coimbra, ai dele); não chegou a virar o século, vítima da tuberculose. Ela via na doença uma ameaça moral e literária que exigia combate, ciclismo, legumes, natação e alguma indiferença (vale a pena dizer que o velho Doutor Homem, meu pai, não achava a misantropia o pior dos defeitos). Eu era ligeiramente enfermiço, e tinha gripes de Inverno, antes de ser imunizado com temporadas de praia, amores passageiros e necessidades práticas, medicamentos de prescrição livre cuja posologia admitia aplicações bastante generosas.

Maria Luísa tem dúvidas em relação a esta narrativa das coisas. Ela entende que há um sentido na história e que o género humano pode estar sujeito a tropeções mas se encaminha para um zénite cheio fulgurações luminosas, de onde foram definitivamente banidas a pobreza, a homofobia, as monarquias, a televisão e todos os adversários morais do Bloco de Esquerda. Como não posso combater coisas que desconheço, limito-me a adverti-la de que o género humano seria muito mais feliz sem colesterol e que as monarquias não são tão desprezíveis como os massacres cometidos em nome da felicidade das nações.

Ela não sabe que um dos últimos governos da República, presidido por José Domingues dos Santos, achava que o bisavô Homem era um traidor à pátria porque ganhava o seu pão como administrador de quintas inglesas no Douro. O escritório foi tomado de assalto pela Guarda, que procurava promissórias e bombas debaixo dos tapetes. Salvou-o o facto de Domingues, um extremista incendiário, ser de Matosinhos (estudaram juntos no Instituto Superior de Comércio) e gostar do ‘vintage’ do Pinhão (de que seguiram duas caixas para Lisboa). Eis como se explica a história, segundo os Homem. Por haver vinho do Porto.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Agosto 2010