domingo, setembro 19, 2010

Coisas que são como um vendaval

A minha sobrinha Maria Luísa entrou em casa, no último fim-de-semana, com um instrumento electrónico que permite ler livros num ecrã. Ela vinha de Braga, lugar de onde continuam a surgir todas as grandes novidades, e onde o dinheiro – no tempo de Camilo tal como no tempo do dr. Barreto Nunes – continua a circular para o bem e para o mal. Refiro Camilo Castelo Branco e o dr. Barreto Nunes porque ambos têm os seus nomes ligados à bibliofilia. O dr. Barreto Nunes continua, a par da dra. Celina, da biblioteca de Vila Praia de Âncora, a ser uma preciosa ajuda quando se trata de reconstruir um índice bibliográfico, uma espécie de labirinto para o qual os meus olhos já não têm a aptidão necessária, nem o meu temperamento (uma das designações para a idade, propriamente dita) a paciência requerida.

A bibliofilia não é uma obsessão – é, antes, um modo de vida. O velho Doutor Homem, meu pai, sempre soube que a leitura não trazia a felicidade a nenhum lar, razão por que guardava para si (e para a sua solidão) os momentos de tranquilidade reservados à biblioteca, poupando a família a um espectáculo puramente privado e íntimo, e de onde não nasceria nada de grandemente útil para o Produto Interno Bruto da pátria (na época não se mencionava o assunto). Por isso, diante destas demonstrações de alfarrabista soturno, a minha sobrinha é um vendaval de modernidade, disposta a adaptar-se aos novos tempos com o talento de uma vencedora sobre o tempo e a história. Ela não gosta da expressão porque, num resto de memória traída, defendeu em tempos que só o proletariado iria triunfar sobre ambos.

Antigos e rigorosos esquerdistas converteram-se em gastrónomos ou em arautos da era tecnológica sem remorso nem expiação – que os livros possam, agora, ser lidos num ecrã, como antigamente assistíamos ao TV Rural do sr. Eng.º Sousa Veloso, não parece trazer-lhes grandes hesitações. O mundo vive em convulsões permanentes e não é em Moledo que se erguerá uma barreira definitiva contra a insanidade. Ao ver o forte da Ínsua e a derradeira esplanada que resiste ao nevoeiro matinal (uma imagem que o nosso provincianismo deve ao dr. Anthymio de Azevedo), lembro ao leitor que continuo a escrever à mão e a usar lápis Viarco n.º 2 para anotar a margem das Memórias de Raul Brandão. Estes vícios são incompatíveis com um país que avança definitivamente para o mundo moderno, convertido à leitura de livros electrónicos quando ainda nem sequer sabe soletrar as orações de um período simples de Fernão Mendes Pinto. A vida não é simples.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Setembro 2010