sábado, outubro 02, 2010

Os casamentos de outrora

Quando o filho Domingos partiu para o Brasil em 1932, depois de um desgos­to amoroso que resultou num casamento anulado à pressa (mas com antecedência suficiente a fim de não causar escândalo – coisa que se repetiria na família quase vinte anos depois), o avô achou que tinha cumprido o essencial da sua vida: tinha uma famí­lia, guardava alguns hábitos de patriarca, deixara a política, enviu­vara cedo, não enriquecera demasiado nos negócios e considera­va o dr. Salazar um contabilista aceitável mas demasiado metido consigo mesmo. Ao contrário da presciência snobe do velho Doutor Homem, meu pai (que con­siderava as botas do dr. Salazar uma obra-prima da “Saville Row de Santa Comba Dão”), o meu avô teve – nas discussões domés­ticas – uma certa inclinação a apoiar o deve e haver do lente de Coimbra, embora desconfiasse alegremente do seu celibato (é uma maneira de dizer) e daquela vida consagrada à dieta e ao apaziguamento dos professores de Coimbra.

Os casamentos dos Homem foram sempre um mistério de solidez, razão por que há tantas histórias de celibato na família – ou de estroinice, como garantia a tia Benedita, a guardiã da fama miguelista de Ponte de Lima. Queria isso dizer que, ou havia casamento ou havia pecado – a opção era maniqueísta mas fez escola. O Tio Domingos não se livrou da fama, e regressou do Pernambuco, muitos anos depois, coberto do rumor do pecado tanto como das picadas de insectos do sertão. Pelos anos fora, a família conheceu, timidamente primeiro, com indiferença depois, vários divórcios que nunca passaram de uma nota de rodapé (curta, como a vida dos hibiscos) nas conversas ao almoço de domingo. Acontece que eu não casei – nunca – e o facto não requer muitos comentários ideológicos nem uma cosmologia apropriada; simplesmente, não aconteceu, primeiro por uma vaga tragédia da juventude, depois por comedimento, por calculismo e, naturalmente, por comodismo puro. Às minhas irmãs explico que me limitei a considerar os casamentos de outrora como uma viagem sem regresso – e que os casamentos modernos não vão com o meu feitio, de tal modo os acho um castigo superior à minha capacidade de resistência.

A minha sobrinha Maria Luísa insistiu por duas vezes na prática do matrimónio e chegou ao ponto (sem dúvida atingindo os limites da boa-fé) de pedir-me conselho. Ela ignora que por detrás da tolerância desprevenida que faço questão de exibir, está um indiferente em matéria de casamento; acho que é uma coisa útil para romances com mais de trezentas páginas – mas não vou agora arrepender-me da felicidade que conquistei.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Outubro 2010