domingo, novembro 14, 2010

O crédito que temos no outro mundo

As “contas públicas” são, na família, um tema recorrente desde 1916. Foi nesse ano que um tio nosso, um lente de Direito, esteve umas semanas de Primavera ocupado a desenhar o plano de contas do governo dessa altura – e que, necessariamente, durou pouco. O meu avô foi condiscípulo de Domingues dos Santos, que viria a ser primeiro-ministro terminal da República, no Instituto Superior do Comércio do Porto; enquanto um se juntou à Maçonaria e ao bolchevismo, o meu avô cuidou da vida e fundou uma empresa de contabilidade e administração em que impôs a regra de não abrigar nenhum membro da família, para não que não se perdesse nem a empresa nem a família.

Mas as “contas públicas” foram, desde esse ano, debatidas periodicamente, sempre com o ressentimento do espoliados – os contribuintes. Não havia centavo ou escudo gasto pelo Estado que não tivesse, por parte dos Homem (seres domésticos, cordatos e de boas contas), a reivindicação de uma nota de crédito correspondente ao gasto. O segredo da boa contabilidade não era, explicava o meu avô, o correcto registo das despesas e das receitas, nem sequer das receitas a haver ou das despesas consentidas para um dado período – mas sim o aforro garantido para anos de desgraça, que viriam no futuro. Este princípio é seguramente tão reaccionário que não foi seguido por nenhum dos governos da democracia, contemporânea e companheira das instituições de crédito e do direito de todas as classes ao endividamento.

A minha sobrinha Maria Luísa anunciou na semana passada que deixará de usar cartão de crédito. Fê-lo sem solenidade, ao correr da conversa, aproveitando a torrente de notícias sobre o endividamento português, cuidando que, no meio de tantas dívidas e de tanto debate sobre o crédito, as suas pequenas nódoas passassem despercebidas. Isto aconteceu numa das visitas ao nosso restaurante preferido de Moledo, o Ancoradouro. A declaração de Maria Luísa compreende-se; faz parte de um plano divino para recuperar almas temporariamente perdidas nos escombros da vida moderna. Que eu o pensasse era uma coisa; mas dizê-lo foi um excesso. A doçura de um vinho antigo (um luxo semanal que o meu médico de Viana autoriza), a penumbra vespertina que entrava pelas janelas, o último sabor de uma sobremesa que tinha percorrido a mesa, fizeram o resto. Maria Luísa bebeu o que lhe restava do seu vinho do Douro e comentou: “Só temos crédito noutra vida, vai-me parecendo.” Ainda pensei em sorrir, mas poderia parecer ironia.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Novembro 2010