domingo, dezembro 19, 2010

A temível busca da perfeição

Fui, outrora, por certo noutra vida mais luminosa, uma espécie de geógrafo. Durante os meus primeiros anos no eremitério de Moledo cuidei que podia – a vaidade é infinita – organizar um “guia do Minho”. Muitos anos de leitura do ‘Minho Pittoresco’ e de romances de Camilo tiveram essa consequência, logo combatida ou nunca levada à prática. A principal razão, evidentemente, teve a ver com a preguiça, um motor essencial da história humana e, claro, da minha biografia. Mas houve um motivo muito mais perverso que me levou a abandonar o projecto; por mais documentação que reunisse, por mais opúsculos, almanaques, cartas topográficas, estampas, tratados que armazenasse naquela divisão a que, por comodismo, se chama “a biblioteca” – não atingia aquele módico de satisfação que me levasse, depois, a escrever qualquer coisa de útil para um punhado de leitores, fosse ele grande ou minúsculo. Mas creio que seria minúsculo.

Juntamente com a preguiça, esta forma de vaidade e de luxúria, que é a “busca da perfeição”, aniquilou a ideia e contribuiu para o sossego dos leitores; nem tudo foram desvantagens. Alguma coisa se lucrou.

A “busca da perfeição” é um dos pecados capitais da humanidade. Fugi a todos os casamentos ideais porque nenhum deles seria perfeito; rasguei alguns magros capítulos desse “guia do Minho” porque nenhum deles era perfeito; usei sempre com abundância e manha essa desculpa vaidosa que me afastou do risco e da responsabilidade.

Lembrei-me disto porque a minha sobrinha Maria Luísa quis conhecer São João de Arga. A Serra de Arga, erguendo-se sobre Caminha e Âncora, é um dos lugares mais perfeitos das minhas peregrinações minhotas, e a pequena sebe de azevinhos que hoje decora a casa de Moledo veio de uma das colinas mais altas do lugar. Se há perfeição absoluta é esta, a dos cumes do meu Minho, aproximando-se das velas do céu. O velho Doutor Homem, meu pai, não perdoaria o devaneio literário – mas Maria Luísa surpreendeu-se com a penedia isolada e robusta que enfrenta as montanhas em redor. Eu limitei-me a perguntar como poderia descrever, se algum dia encetasse a tarefa de escrever um “guia do Minho”, aquela perfeição silenciosa, brutal e escondida das estradas nacionais. Grande parte do meu Minho, entendi então, é invisível. Ou então é inadequado ao alfabeto. A temível busca da perfeição é, afinal, uma desculpa para ficar sentado à espera que o Natal passe e não incomode esta preguiça congénita que tanto protegeu os Homem de outras gerações.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Dezembro 2010