domingo, fevereiro 13, 2011

O Antigo Egipto era uma falsificação

O mundo do meu avô estava delimitado por dois perigos iminentes: a filoxera e as encostas de La Fuente de San Esteban. A filoxera arruinou o «antigo regime» do Douro; quanto a La Fuente de San Esteban e a La Fregeneda, era a sua fronteira com o desconhecido – a Espanha do seu tempo, que era muito mais do que a galega, vizinha de Valença, do rio Minho e dos choupos verdes de Cerveira.

Hoje, os perigos iminentes aumentaram; o mundo ficou mais inseguro se bem que o desconhecido não comece em Espanha nem acabe nos Urais, onde principiaria o fim do mundo. O meu sobrinho Pedro acompanha os acontecimentos do Egipto como se fossem, em simultâneo, a filoxera e as encostas de La Fuente de San Esteban; só que «em simultâneo» quer dizer, exactamente, «ao mesmo tempo» em que os «acontecimentos» decorrem, o que impede a repetição da forma como o velho Doutor Homem, meu pai, gostava de ministrar as suas lições de História dos Impérios a propósito da II Guerra, que seguíamos com vários dias de atraso pelos jornais da época e pelos noticiários da rádio, encostados a uma pilha de velhos atlas e tratados de geografia e, mesmo, com plantas topográficas de certas cidades importantes. Nesses papéis impressos em cores esbatidas, recolhidos das bibliotecas familiares onde tinham sido guardados com o esmero de tesouros do Vaticano, traçavam-se coordenadas de geoestratégia e movimentações de tropas em debandada.

O meu sobrinho escutou estas informações com a curiosidade de um paleontólogo, murmurou qualquer coisa acerca de como o tempo passa e apressou-se a mudar de canal de televisão, procurando mais imagens transmitidas do Cairo.

Voltando atrás sessenta anos, o Cairo era um oásis de recordações. Não vinham com o Cairo apenas o Alto Egipto, as ruínas do deserto e o fim do império otomano. Vinha também um esplendor que não era bem do Cairo mas dos ingleses que o habitaram. Sabíamos pouco desse mundo de aventura, mistério, exotismo, crocodilos e malária; as pirâmides estavam ali para que as admirássemos, os sarcófagos continham faraós ou sacerdotes que tratávamos como achados arqueológicos, o Nilo era um espelho cristalino das suas margens, e mesmo o Suez era uma recordação literária de Eça de Queirós. A única coisa que não topávamos era essa verdade simples – a de o Egipto ser, largamente, habitado por egípcios e não por historiadores que gostavam de ruínas e de cidades cobertas de pé e personagens de Agatha Christie. O nosso mundo era curto, civilizado e cabia num atlas. Não tinha grande correspondência com o mundo real.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Fevereiro 2011