domingo, março 13, 2011

Uma lembrança em tempo de aniversário

Nunca me preocupei com o envelhecimento. O meu médico, herdeiro e seguidor de uma categoria de benfeitores que viveu nas nossas províncias – e que tanto assistia a partos como cuidava de maleitas do fígado –, desenganou-me sobre o assunto quando me decretou uma série de doenças crónicas ou destinadas a afligir-me em permanência. Elas passariam a requerer atenções de um ser egoísta e que devia, daí em diante, consagrar parte do seu tempo à leitura das bulas dos medicamentos, a ministrar a dose correcta de comprimidos, a abster-se de uma boa parte da sua “alegria gastronómica” ou a olhar a passagem das estações como uma bênção do destino.

O destino tem abençoado este ser egoísta que aceitou, sem resistências de maior, a ideia de prolongar a vida através de abstinência, comprimidos, agasalhos e pequenos-almoços madrugadores. Não sigo uma dieta em particular; uma vida medíocre e sem demasiados altos e baixos foi avara em excessos comprometedores. Os meus irmãos dizem que nasci com a adolescência feita, e as minhas irmãs nunca cessaram as suas recriminações por uma vida de celibato. Os primeiros, criticam o meu modo de vida; as segundas, desprezam o meu modo de vida. Os primeiros, porque nunca fui o doidivanas que esperavam por companhia, nem o cônjuge cumpridor de deveres insuspeitos; as segundas, porque nunca tive a minha pacata existência assaltada ou por deveres conjugais, ou pela gritaria de crianças com sarampo, ou pela angústia de adolescentes problemáticos. Limitei-me a seguir a minha vida, o que não foi “aventuroso” – nem “fascinante”, como agora se diz.

Cheguei à última década. Conto os dias, como um milagre. Os meses, como uma desfaçatez. Os anos, como um acontecimento digno de registo. Às vezes olho a minha família, perfeita ou imperfeita, com a sensação de pertencer-lhes como um desvio permitido. As paixões de outrora têm apenas o perfume de outrora; as paixões da idade adulta relembram um olhar, uma conversa, um passeio pelos cafés, cartas trocadas sem dizer o que deviam dizer – sempre oportunidades perdidas que não mudariam o essencial da vida desta velharia minhota estacionada em Moledo. Os meus sobrinhos dão-me as notícias essenciais. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, aconselha-me obediência ao médico e perseverança nos chás com ervas silvestres – e, já agora, que não canse tanto a vista com livros que já me não acrescentam sabedoria. Procuro neles algum conforto contra as ameaças da idade. O resto virá.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Março 2011