domingo, abril 17, 2011

Os poetas e um elogio a Homem de Mello

O velho Doutor Homem, meu pai, um pouco na esteira da família – que gostava de exagerar no seu barbarismo e fingia uma insensibilidade de que não padecia –, dizia desconfiar dos poetas ou, pelo menos, da sua aura. O Porto do seu tempo, depois dos arroubos finisseculares que motivariam gargalhadas de Camilo na sua biografia de Basílio Fernndes Enxertado, dava-se relativamente mal com “os poetas” e tinha razões para isso – o constitucionalismo encheu de vates as secretarias do reino e a República, burguesa e radical, não tinha nem a noção da métrica nem fantasia que lhe chegassem para lá dos ditirambos ao código civil. Ou seja: os poetas do constitucionalismo eram medíocres, e os medíocres da República não eram poetas. Tirando a dedicação existencial e amistosa do meu avô Norberto, administrador de quintas do Douro, pelo poeta de Barca d’Alva e da Quinta da Batoca, Guerra Junqueiro, a família evitava comprar os almanaques de versos. Desde que D. Pedro cometeu a Carta Constitucional em verso que os Homem se tornaram relapsos aos dicionários de rimas.

Mas o velho Doutor Homem, meu pai, mentia. Ou, mais delicadamente, escondia uma generosa biblioteca com os seus poetas ingleses, onde a idade me confortou mais tarde com o encontro amoroso tanto de Shelley como de Keats ou Coleridge, a que acrescentou outros que lhe serviam os propósitos de alguma melancolia disfarçada, como Yeats ou, episodicamente, W. H. Auden.

O tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, onde as neblinas nunca o levaram às penumbras da poesia mas à espiritualidade da gastronomia, considerava Pedro Homem de Mello o único poeta a quem devia alguma deferência. Eu tinha medo do Dr. Homem de Mello que era vinte anos mais velho, era respeitado n’A Brasileira e fumava cigarros ‘Antoninos’, um plebeísmo romântico e elegante. Recordo-o hoje, caminhando pelas veredas de Afife ou entre as sombras dos pinhais da Serra d’Arga – e uma melancolia volúvel relembra os seus poemas em que ninguém descortinara o pessimismo sem amargura daquele homem que hoje apenas merece a atenção dos velhos. O meu pai apreciava-o e considerava-o um emblema de lágrimas de outrora; ele, que nos momentos mais cómicos ria do mau sentimentalismo de Junqueiro ou de certa impostura de Garrett (o Leitão da Silva, como era conhecido na nossa família), guardava uma comoção para Homem de Mello. Compreendo-o: era um dos derrotados. E, na galeria de poetas, a sua sensibilidade era imprevisível, como uma alma antiga e esvoaçante, perdida nos areais do Minho.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Abril 2011