domingo, maio 29, 2011

O minho feliz dos anos cinquenta

Naquele Minho estival dos anos cinquenta as novidades demoravam bastante a chegar e, quando chegavam, depois de o velho Doutor Homem ter transportado a família até ao velho casarão de granitos cobertos de musgo e hera, por onde se escapava o perfume de antigas alfazemas – sempre requeridas pela Tia Benedita, a matriarca da família –, tudo tinha já passado de moda. Moledo não era ainda o poiso regular das velhas famílias do Porto, do Norte e dos imigrados que sentiam saudade dos pinhais ou do iodo; e o iodo, por sua vez, ainda não era aquela evocação romântica das manhãs frescas e luminosas das épocas balneares, mas apenas um elemento de prescrição médica, uma espécie de aspirina útil ao bem-estar geral.

A família dividia-se, na época, entre as férias de Ponte de Lima e as férias à beira-mar; entre o repouso secular dos Homens do velho Minho campestre, orientado pelas leituras de Verão e pela revisitação ao retrato do Senhor Dom Miguel, estacionado nos corredores escuros do velho casarão – e uma passagem pelas brisas marinhas que Dona Ester, minha mãe, achava serem o colírio necessário a toda a existência e uma espécie de antídoto contra as gripes que haviam de chegar.

Só o Tio Alberto aparecia sem qualquer tipo de pontualidade, risonho e carregado de suspeitas, celibatário convertido à província. Os meus irmãos (éramos cinco) cumpriam os deveres de comparência às refeições de família – e eu, retemperado de uma segunda ou terceira adolescência (dado que a primeira não existiu), levava trabalho do escritório. Nesses anos, navegávamos pelo rio Minho num barco que só na imaginação do meu irmão Luís se assemelhava às gigantescas barcaças que percorriam o Mississípi; grupos de deserdados da política e dos negócios, unidos pela idade e pela boa saúde, apreciavam os crepúsculos de Caminha, de Cerveira, de Âncora e de Moledo, sem saberem que seriam os últimos actores desse filme mudo e a preto e branco em que se julgava que o ‘glamour’ era uma pose desinteressada e indiferente, para a qual se disputavam óculos de sol vindos de França ou de Itália.

Nessa altura não nos preocupava a crise do crédito nem os enigmas das hipotecas, dos défices da balança de pagamento ou, sequer, a escassez de emprego. Sem sabermos, seríamos – até ao fim da vida – parte de uma classe de privilegiados que habitou em Portugal até aos anos setenta, e que podia dar-se ao luxo de ser das esquerdas ou das direitas. A vida não era difícil; era apenas medíocre, talvez, e irrisória. Os heróis, como o meu Tio Alberto, eram fugitivos e não contavam os seus segredos.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Maio 2011