domingo, setembro 25, 2011

Um Domingo de Sol e água de Melgaço

A minha sobrinha Maria Luísa tem, com o meu médico de Viana, uma relação conflituosa: por um lado, acha que a minha longevidade lhe deve bastante – dobrar os noventa é uma meta até agora só ao alcance de alguns, embora a minha família tenha demonstrado, ao longo dos séculos, uma tendência permanente para desanimar os seus desafectos, prolongando a existência até ao inadmissível. Um tio que dividiu a sua existência entre os Arcos, Valença e Lisboa é mesmo uma lenda desconfortável, finando-se aos 105 anos na sua quinta ligeiramente decadente, ouvindo o chilrear dos pássaros e o ruído dos freixos junto a um ribeiro que corria intramuros.

Por outro lado, acha-o um libertino e ligeiramente gordo. A libertinagem manifesta-se sobretudo pelo estômago e pelo gosto despropositado por nobiliários arcaicos que fixam os desaires e os pecadilhos das avós minhotas a norte de Leça da Apúlia e até ao derradeiro grão de poeira que nos separa de Tuy. Afastado este pormenor, almoçámos todos em Caminha no domingo passado, saboreando no restaurante Primavera um cabrito que Maria Luísa classificou como uma ameaça ao meu regime alimentar e que duplicou, largamente, a felicidade dos comensais.

Depois do almoço, o repouso merecido: reunidos em grupo palrador na esplanada do Café Central, a tarde providenciou-nos a sua saborosa Água de Melgaço. Tenho com a Água de Melgaço uma relação enamorada e fiel desde há décadas – amarga e luminosa, ela lembra o tempo em que o Minho era uma nacionalidade e uma referência. A Água de Melgaço fazia parte dessa identidade, à semelhança de uma cédula pessoal ou de uma declaração de contribuinte para a repartição de Finanças. Vinda em caixas madeira para a casa de Ponte de Lima ou, mais tarde, para este eremitério de Moledo, é hoje uma espécie de recurso da memória que vamos periodicamente buscar ao Café Central e à sombra dos seus guarda-sóis. Esta semana comentávamos uns grafitos que foram misteriosamente deixados na fachada do edifício da Câmara. Entre um gole de Água de Melgaço e o pedido de um novo café, Maria Luísa, a esquerdista da família, concedeu que se tratava de um acto de barbárie cometido por estranhos (murmurava-se que duas estrangeiras e ainda por cima holandesas). Depois, uma nuvem passou arrastando a sua beleza disforme sobre a foz do Minho e as colinas de Santa Tecla. O meu médico de Viana quis ainda mostrar-nos a estrada florestal de Venade. Maria Luísa levou algumas garrafas de Água de Melgaço que bebemos entre os freixos e um abeto deslocado da paisagem. Eis um domingo.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Setembro 2011

domingo, setembro 18, 2011

Outono: meditação sobre o que há-de vir

Todos os grandes autores, chegado o Outono, se ocuparam com meditações sobre a morte. Falo do Outono das suas vidas – e da contemplação do que há-de vir. Os Homem, um caso singular de arrogância peninsular, pouco se ocuparam do assunto.

Obrigados a sobreviver num anonimato que procuraram pelos seus próprios meios, como uma espécie de salvaguarda contra a democracia e a idade das multidões, os seus tempos de meditação eram ocupados com coisas sobretudo práticas; a espiritualidade literária ou filosófica dos meus antepassados era quase nenhuma, se exceptuarmos alguns arroubos literários do meu avô paterno (administrador de quintas do Douro, onde se entretinha a dialogar com ingleses razoavelmente iletrados ou, em alternativa, com o poeta Guerra Junqueiro retirado na sua Quinta da Batoca, em Barca d’Alva – convenhamos que a escolha não era muito requintada), vícios de bibliófilo do velho Doutor Homem, meu pai, e a dedicação romântica a tudo o que era inútil, por parte do meu Tio Alberto.

A Tia Benedita, matriarca da família, achava o assunto próprio de quem não tinha emprego ou de quem, tendo profissão, não se lhe dedicava com concentração. No seu casarão de Ponte de Lima bastavam-lhe as jornadas marianas de Maio e as festividades de Verão, além da visita anual a Braga – para apreciar os festejos, muito episcopais, da Semana Santa – para preencher a sua necessidade de religião; o resto era dedicado a sobreviver, aproveitando a lição de uma família de velhos miguelistas obrigados à rendição e à modéstia.

Ambas as coisas ajudaram muito a que o clã vivesse numa sensatez várias vezes confundida com egoísmo. Afastados da política porque o Príncipe fora proscrito, arredados da História porque ela se reescrevera com as cores da glória dos vencedores, os Homem dedicaram-se a viver com parcimónia e discrição. Foi, é bom notar, a sua salvação: há exemplos de antepassados e contemporâneos que teriam sido ou filósofos impenitentes (o Tio Henrique, que tinha a paixão da música), ou aventureiros das classes possidentes, conduzindo Alfa Romeos e seduzindo mordomas da Senhora da Agonia.

Só o Tio Alberto reuniu as qualidades de ambos; apaixonou-se por uma discreta e bela princesa do Cáspio, a quem sobreviveu alguns anos, e a quem dedicou o seu coração celibatário. Mas, chegado o Outono – o da sua vida – limitou-se a continuar a viver como se não houvesse eternidade.

De facto, não havia, nem há. A eternidade é o que leva os homens a perderem-se com mais frequência. Há só o que há-de vir.

in Domingo - Correio da Manha - 18 Setembro 2011

domingo, setembro 11, 2011

Coisas vagas sobre o botânico impopular

O meu Tio Alberto achava – sem adiantar qualquer razão – que a ocupação de botânico era uma das mais nobres no leque das chamadas “profissões relativamente inúteis”. Ele passava grande parte do ano rodeado de árvores na sua casa de São Pedro de Arcos, transformada em cozinha (era um gastrónomo conservador e um cozinheiro inventivo), biblioteca, escritório de reclusão para o jurisconsulto, historiador amável e solitário imune à tentação do matrimónio. A sua paixão por árvores era prática: gostava de florestas (que acordavam nele teorias sobre a magia da terra), apreciava-lhes a sombra no Verão, aproveitava-as como cenário para passeios matinais ou crepusculares numa época em que as pessoas normais não vestiam roupas de ginástica para respirarem a ritmo acelerado – mas o seu conhecimento das espécies era diminuto; era acusado de confundir carvalhos (que nessa altura povoavam as colinas que levavam aos cumes das serras) com glicínias e, pior, de achar uma beleza superior nas araucárias de Viana.

Foi por ele que me tornei um ignorante em matéria botânica, coisa que me levou, nos meus períodos de maior ócio, a tentar escrever, precisamente, um resumo de botânica minhota. Um resto de sensatez, colhida de hábitos antigos e hoje raros na minha família, fez com que o projecto ficasse a meio ou a três quartos. Só uma classe de incompreensíveis fanáticos se dedica a apreciar árvores. Poucas pessoas se dedicaram a construir, planear, cuidar ou, apenas, a gozar a beleza de um jardim. O Tio Alberto, para escapar a observações sobre a sua incúria como hortelão, argumentava que o seu “jardim” era um repositório de causalidades que foram nascendo em redor da casa, contaminando os caminhos e ladeando o velhíssimo lago que ornamentava o seu pátio, amplamente dominado por uma mesa de refeições estivais de que ele gostava de relembrar que serviu para servir uma refeição a D. Ramón Otero Pedrayo (recordo que sardinhas fritas e ovos com chouriço foram o prato principal, juntamente com migas de acelga).

Agora que o Verão palmilha a estrada de regresso pela província fora, despedindo-se aqui e ali, volteando entre manhãs mais nebulosas e noites de mais ventania, a vida do botânico renasce com ironia. Ele anseia por terra preparada para o frio e para a germinação; quer limpar os resíduos de uma beleza rara que se perdeu e foi estiolando. Enquanto a generalidade das multidões chora o calor de Agosto, o botânico – malvado – sorri à ideia de um Outono moderado mas com vapores humedecendo a terra agradecida. É uma ocupação impopular. Nobre e, por isso, impopular.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Setembro 2011

domingo, setembro 04, 2011

Os difíceis anos que chegam

Os ventos da história não vão e voltam – como os das altas pressões que a família se habituou a estudar nas cartas que o Dr. Anthímio de Azevedo mostrava, orgulhoso, na televisão. Os ventos da história circulam, as pessoas amadurecem – como certos frutos de alguma utilidade – e morrem, as casas envelhecem, as árvores reproduzem-se se tiverem sorte. Existe, no universo, uma certa ordem amarga e banal que se repete para descontentamento dos optimistas de todas as condições; infelizmente para eles, os momentos de glória não são perpétuos e há contas a ajustar com a realidade. Os meus sobrinhos não gostam que se lhes lembre, no pico do Verão, a existência do Outono; até lá, limitam-se a vaguear pela praia como adolescentes perpétuos. Vivem como recolectores, saboreando a leveza das coisas, e eu compreendo a atracção pelo efémero, pela simplicidade da areia de Moledo, pelo mar do Minho, pela ideia das férias que representam o que de melhor tem o Verão.

Durante anos e anos, este velho minhoto, contemporâneo do Titanic e quase da primeira utilização da penicilina (tal como o óleo de fígado de bacalhau ou o mercurocromo, as novas gerações desconhecem a sua existência) lembrou à família – reunida em conciliábulos de fim de semana, observando como um domingo se sucedia a outros – que os anos difíceis chegariam.

A minha sobrinha Maria Luísa pensou, durante algum tempo, que se tratava de uma tentação reaccionária de um tio que o Minho conservou para lá de todas as probabilidades; o meu sermão da montanha seria uma espécie de anátema contra a democratização da sociedade, a distribuição da riqueza e a ascensão das classes trabalhadoras. Eu já estava velho para isso. O velho Doutor Homem, meu pai, notara a hipocrisia do lente de Coimbra, o dr. Salazar, que tivera o desplante de declarar não poder permitir-se que o operariado se transformasse numa classe privilegiada. Eu já estava velho para isso. Limitava-me, em arengas quase murmuradas diante de dos meus irmãos, ocupados com leis e finanças, a lembrar que os ventos da história circulam e que os anos difíceis chegariam porque o capital é mortífero e cruel. No fundo, lembraria a Tia Benedita, que gostava de coleccionar lugares-comuns, foram os validos do irmão do Senhor Dom Miguel que andaram pelas tabernas de Londres arrebanhando mercenários e custeando a empresa com os empréstimos dos agiotas. Custou a pagar essa dívida. Os mercenários do nosso tempo são auto-estradas caras, obras inúteis e promessas de progresso. Os difíceis anos que chegam são a paga pela crendice dos meus compatriotas.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 Setembro 2011