domingo, novembro 13, 2011

O que perdemos com o campo de outrora

O velho Doutor Homem, meu pai, ameaçava frequentemente desertar da cidade e vir viver para o Minho – aquele Minho de outrora, bucólico e incompleto, onde nunca se deu verdadeiramente bem, precisamente por lhe faltar a cidade. A cidade desses tempos (anos cinquenta, sessenta) também não era a cidade que hoje ameaça invadir todos os recantos com o seu ruído, a sua civilização e as suas vantagens; era uma soma de bairros a que o tempo emprestou elegância e a melancolia concede uma aura de bondade. O campo, confesso, era triste e pobre – verdejante, cheio de pastos, de estradas estreitas e onde os carros de então circulavam por vaidade e coragem. O meu Tio Alberto rompeu com esse mundo de camponeses pobres do tempo do dr. Salazar – e julgou, por algum tempo, viver numa espécie de condado britânico com ‘landlords’ civilizados e presbíteros cultos, desejosos de discutir a última guerra peninsular enquanto esperavam a chegada de um carteiro educado e destemido o suficiente para resistir às meteorologias locais. Esse campo nunca existiu. Tivemos oportunidades, sim, mas nunca existiu. O país nunca compreendeu o seu verdadeiro ressentimento contra um mundo pobre e desajustado onde tudo chegava com dificuldade – desde a assistência médica ao sinal de televisão – e de onde se fugia para ‘melhores condições de vida’, que raramente se verificavam nos bairros pobres das cidades. Hoje é tarde: desabituámo-nos da simplicidade e os gostos das novas gerações pouco coincidem com os limites das montanhas e da agricultura que desapareceu em grande parte das províncias.

O ideal de campo do velho Doutor Homem, meu pai, era demasiado britânico, e em Portugal só aparecia nos romances de Mrs. Trollope, em bibliotecas arruinadas pela idade e nunca traduzidos – porque seriam incompreensíveis. A minha sobrinha Maria Luísa gosta do campo – a uma distância relativa que lhe permita manter-se imune. Por mais difícil que seja a vida nas cidades, não lhe passa regressar (como os antepassados de outro regime, cordatos e terratenentes) para cultivar as hortas ou dedicar-se – como agora é comum – ‘à agricultura biológica’. Compreendo-a, mas não vejo óbice à altura. A cidade deixou de ser uma garantia do paraíso terrestre, munida de todos os acessos ao bem-estar; Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, ainda acha que para lá de Viana existe um mundo como aparece nas telenovelas a que assiste com determinação, aborrecido e soturno. Mal se aproxima o Inverno, sonha com as mimosas na estrada de Caminha. Parece uma citadina.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Novembro 2011