domingo, janeiro 29, 2012

O fim da Internet nos areais de Moledo

Os filhos da minha sobrinha Maria Luísa queixam-se de que estão isolados do resto do mundo. Isso deve-se ao facto de estarem, não empoleirados nos muros esventrados da Ínsua, por exemplo, rodeados de mar diante de Moledo, mas pela simples razão de a mãe não estar disposta a chamar o técnico da empresa de internet. Assim, em Braga, há dois pré-adolescentes que sofrem as agruras dos antigos náufragos, observando o horizonte em busca de um navio salvador e deitando contas à vida enquanto não chega transporte. O transporte, segundo suponho, chama-se ‘internet’ e ‘televisão’.

Maria Luísa tentou explicar que uns dias de ‘normalidade’ não fariam senão bem, consagrando-os à leitura ao serão ou à obrigação de adormecer mais cedo.

Infelizmente, a ‘normalidade’ é, pelo contrário, a existência de internet e de televisão, os elementos essenciais da vida familiar. A minha sobrinha, a esquerdista da família, optou por encolher os ombros, mentindo ligeiramente, e justificando-se com a alta taxa de ocupação dos técnicos que marcaram a visita apenas para a próxima semana. Entretanto, aconselha as crias, exaustas de tanto silêncio ou de jazz como música de fundo, a recolherem-se mais cedo e a aproveitarem o tempo para se dedicarem a tarefas escolares. Infelizmente, é tarde demais para dar alguma ordem à existência.

Coisas catastróficas como o Facebook e os jornais online tomaram conta da vida das pessoas. Não há dia em que, folheando o jornal do dia, não haja alguém que me informe que já leu a notícia na noite anterior; este contra-senso é tão frequente que me interrogo sobre a necessidade mudar de hábitos em geral. Os jornais da manhã, por exemplo, perderam grande parte daquela importância decisiva que era a de despertarem a curiosidade e o apetite do leitor. A própria Maria Luísa me informa, sem alarme, que daqui a uns anos leremos os jornais preferencialmente no ecrã dos telemóveis, a qualquer hora do dia e da noite. Esta novidade trucida parte da minha existência, consagrada a armazenar surpresas e conhecimentos inúteis com a imprensa matutina e conformada com o facto, que nunca procurei desmentir, de que as notícias têm uma hora para fazerem parte da nossa vida.

Os filhos de Maria Luísa, por outro lado, nasceram numa época em que, ai de nós, tudo é notícia – e todas as notícias são de toda a hora. Diante do numeroso grupo de pessoas que acha isto um grande avanço para a humanidade, apenas um reduzido grupo de preguiçosos se mantém satisfeito nos areais de Moledo, gozando a breve interrupção do nevoeiro e imune às discussões sobre as taxas de juro.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Janeiro 2012

domingo, janeiro 22, 2012

O ódio, o rame-rame e a necessidade do vento

Há certos períodos da história, por motivos certamente inexplicáveis, em que o ódio anda à solta. Existem, sobre isso, duas perspectivas: uma, muito moral e cheia de bondade, que supõe um queixume geral sobre como os tempos estão amargos e sobre a necessidade de “conciliação”. Assisti, ao longo da minha vida, a vários períodos de “conciliação”; o mais longo, quase perpétuo, foi imposto pelo dr. Salazar, que tinha a vantagem de contar com o exército e as finanças do seu lado – com essas duas legiões, a “conciliação” era um objectivo garantido. Hoje, o exército não conta e as finanças (salvo se se falar, como o faz a minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, “na finança”, um conjunto de cavalheiros hediondos que manuseia os destinos do país no conforto dos seus gabinetes) estão pobres.

A Tia Benedita temia que se cancelassem em Ponte de Lima os festejos em honra de Nossa Senhora das Dores. Ela acreditava que as romarias, a procissão, os cortejos, os foguetes e o despique entre as filarmónicas contribuíam para a “conciliação”. Depois disso, a vida voltava ao normal. Queria ela dizer, na sua sabedoria de Antigo Regime (anterior, portanto, a Manuel Fernandes Tomás), que se voltava “ao rame-rame” – que devia ser interrompido de tempos a tempos.

Hoje, estamos “no rame-rame”. Suponho não haver nenhum estudo sociológico sobre a matéria, mas acredito que os portugueses não só não apreciam grandemente “o rame-rame” como acreditam que, ao contrário de outros povos, não foram feitos para “o rame-rame”.

Sem ser doutorada em ciência política, também Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, sustenta que é preciso mais do que a realidade para alimentar os seus concidadãos. Ontem, ao pequeno-almoço, enquanto me servia do meu café de cevada, fonte de humildade e de hipertensão saudável, Dona Elaine sugeriu que estava um nadinha cansada de “más notícias sobre as finanças”. Lembrei-lhe que noutros países se ouviam as mesmas más notícias e que a prosperidade tanto se perdia num ano como se recuperava em décadas. Ela confirmou, e lembrou os anos de penúria e de verdadeira “austeridade”, quando se dividiam as sardinhas e não havia talhos nem televisão por cabo.

“O senhor doutor sabe de finanças, mas eu percebo do Minho. Fazer contas está muito bem, mas também é preciso um bocadinho de espavento”, lembrou a filha de emigrantes de Reboreda.

Eu concordei. Na minha cabeça, a palavra que ficou foi “vento” em vez de “espavento”, mas atribuo isso ao meu conservadorismo congénito.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Janeiro 2012

domingo, janeiro 15, 2012

O meu casamento com Jenny Whitestone

Talvez eu tivesse, em sonhos, casado com Miss Jenny Whitestone. A impressão é antiga e nebulosa, cheia de recordações literárias. Hoje, quase ninguém sabe quem é Miss Whitestone e, portanto, o meu suposto casamento seria relegado – como convém – àquela clandestinidade que é, na literatura como na vida, a antecâmara da felicidade verdadeira.

A minha sobrinha Maria Luísa, citando certa autora, e ajudada pela sua “deliciosa idade” (aquele período que, nas senhoras, ronda os quarenta anos), acha que a felicidade é “uma espécie de subproduto”. Tanta sensatez parece-me obra de desgosto e até a mim me espanta. Na verdade, Miss Whitestone nunca me desiludiu até hoje; o principal motivo é o de a sua figura ser pura criação literária, evidentemente, e só viver nas páginas de ‘Uma Família Inglesa’, de Júlio Dinis, romance que hoje todos esqueceram. A mim comoveu-me sempre o seu génio britânico e certa bondade portuense; mas falta-lhe, digamos, a tempestade que desperta paixões irresistíveis e descompõe destinos timoratos. Sobre ela, eu tive uma larguíssima vantagem: a de o velho Doutor Homem, meu pai, ser um personagem verdadeiro e admirável, ao contrário da figura de Richard Whitestone, o pai de Jenny e de Carlos. Defeito de Júlio Dinis, que não desenhou – porque não podia – uma figura como a de Craft, o personagem inglês de Eça (em ‘Os Maias’, onde é apresentado com a sua genealogia portuense), que se bateu como voluntário em Marrocos e na Abissínia e é um modelo de virtudes cépticas. Craft nunca poderia ter casado (a sua descrença no género humano traçou-lhe o destino); Carlos Whitestone, o irmão de Jenny, teria forçosamente de casar (com Cecília, se lerem o romance); e Jenny teria de aguardar por mim. Infelizmente, vivemos em tempos diferentes, mesmo se as minhas irmãs me acusam de pertencer ao século XIX, o que é um gesto de bondade arqueológica.

Maria Luísa, quando lhe contei este projecto antigo (o de, algures, poder ter casado com Jenny Whitestone) franziu o sobrolho e lembrou que os bons casamentos são feitos de pessoas reais. Nada mais verdadeiro. Ela própria, pessoa real, uma mulher que atravessou – com sucesso notável, uma vez que continua a visitar a minha biblioteca – duas ou mais décadas de feminismo, fracturas morais e desafios à espécie, já acumulou dois divórcios.

Jenny Whitestone apreciava begónias. Eu cultivo hibiscos, lembro alguma fidalguia das giestas amarelas do Minho, prolongo a vida das japoneiras do jardim do eremitério de Moledo. É uma aliança natural.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Janeiro 2012

domingo, janeiro 08, 2012

Os portugueses, a inveja e a antipatia

O velho Doutor Homem, meu pai, insistiu várias vezes no facto de a última palavra de ‘Os Lusíadas’ ser ‘inveja’. Contra a doutrina das ‘puras coincidências’ o causídico achava que havia nesse acaso todo um propósito nacional. O seu amor por Camões era questionável e flutuante, horrorizado por tantas declarações de encomiástico fervor pelo vate dos sonetos e pelo autor da epopeia que erguia a pátria ao Olimpo – mas alguma coisa dali se retiraria. ‘Os Lusíadas’ era um poema bom para valorizar uma raça de bandidos dos mares, de marinheiros nada timoratos, de valentões capazes de fazer rir como de fazer corar de vergonha as quinas da bandeira; malandros, heróis, aventureiros, comerciantes, almocreves, cépticos e maus cidadãos – este era o retrato que o velho Doutor Homem, meu pai, conservava dos versos em honra de Vasco da Gama e dos seus heróis e comparsas. Esse era o retrato dos portugueses “de boa têmpera”, como se dizia antigamente – honrados mas malandrotes e espertos, matreiros mas generosos.

O gosto da pátria por ‘Os Lusíadas’ era, também, conforme ao país: exaltante, se calhava estarmos em temporada; deprimido, ou façanhudo, se os tempos iam de descrédito e de mágoa. No século XVIII, Luís António Verney achava ‘Os Lusíadas’ uma obra de segunda linha e um dos malandros mais apreciados nas estantes da velha biblioteca de Ponte de Lima, o Padre Agostinho de Macedo, tentou provar a sua menoridade. Em vão.

Ficou a palavra ‘inveja’ como testamento de Camões sobre uma pátria que, a períodos incertos, demonstrava o seu desapego à honra. A inveja seria um dos nossos pecados capitais, se os portugueses os enumerassem; sobre a inveja, a capacidade de mofar sobre tudo e de toda a gente, sobretudo dos bons sentimento; e sobre tudo isto, de novo a inveja como mãe de todos os nossos vícios, mais do que a preguiça, a pobreza endémica, a injustiça e, como me ensina a minha sobrinha, as desigualdades sociais.

Não desanimemos. Passei o ano longe do leitor e entretido a ler os prognósticos sobre o futuro da pátria. Todos eles são tão duvidosos como a natureza dos avisos que nos lançam – a catástrofe é eminente e aproxima-se a passos largos. Para a maior parte dos adivinhos, 2012 será um ano fatal para o nosso ânimo. Noto alguma diferença, é certo. Há menos euforia despropositada e mais algum decoro na forma como se gasta o dinheiro. Habituados, durante anos, a viver no período da embaixada de El-Rei D. Manuel ao Papa, os portugueses regressam tristonhos do arraial de fogachos. O resultado é ficarem manhosos e entretidos a cultivar antipatias.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Janeiro 2012