domingo, janeiro 08, 2012

Os portugueses, a inveja e a antipatia

O velho Doutor Homem, meu pai, insistiu várias vezes no facto de a última palavra de ‘Os Lusíadas’ ser ‘inveja’. Contra a doutrina das ‘puras coincidências’ o causídico achava que havia nesse acaso todo um propósito nacional. O seu amor por Camões era questionável e flutuante, horrorizado por tantas declarações de encomiástico fervor pelo vate dos sonetos e pelo autor da epopeia que erguia a pátria ao Olimpo – mas alguma coisa dali se retiraria. ‘Os Lusíadas’ era um poema bom para valorizar uma raça de bandidos dos mares, de marinheiros nada timoratos, de valentões capazes de fazer rir como de fazer corar de vergonha as quinas da bandeira; malandros, heróis, aventureiros, comerciantes, almocreves, cépticos e maus cidadãos – este era o retrato que o velho Doutor Homem, meu pai, conservava dos versos em honra de Vasco da Gama e dos seus heróis e comparsas. Esse era o retrato dos portugueses “de boa têmpera”, como se dizia antigamente – honrados mas malandrotes e espertos, matreiros mas generosos.

O gosto da pátria por ‘Os Lusíadas’ era, também, conforme ao país: exaltante, se calhava estarmos em temporada; deprimido, ou façanhudo, se os tempos iam de descrédito e de mágoa. No século XVIII, Luís António Verney achava ‘Os Lusíadas’ uma obra de segunda linha e um dos malandros mais apreciados nas estantes da velha biblioteca de Ponte de Lima, o Padre Agostinho de Macedo, tentou provar a sua menoridade. Em vão.

Ficou a palavra ‘inveja’ como testamento de Camões sobre uma pátria que, a períodos incertos, demonstrava o seu desapego à honra. A inveja seria um dos nossos pecados capitais, se os portugueses os enumerassem; sobre a inveja, a capacidade de mofar sobre tudo e de toda a gente, sobretudo dos bons sentimento; e sobre tudo isto, de novo a inveja como mãe de todos os nossos vícios, mais do que a preguiça, a pobreza endémica, a injustiça e, como me ensina a minha sobrinha, as desigualdades sociais.

Não desanimemos. Passei o ano longe do leitor e entretido a ler os prognósticos sobre o futuro da pátria. Todos eles são tão duvidosos como a natureza dos avisos que nos lançam – a catástrofe é eminente e aproxima-se a passos largos. Para a maior parte dos adivinhos, 2012 será um ano fatal para o nosso ânimo. Noto alguma diferença, é certo. Há menos euforia despropositada e mais algum decoro na forma como se gasta o dinheiro. Habituados, durante anos, a viver no período da embaixada de El-Rei D. Manuel ao Papa, os portugueses regressam tristonhos do arraial de fogachos. O resultado é ficarem manhosos e entretidos a cultivar antipatias.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Janeiro 2012