domingo, fevereiro 12, 2012

Um breve elogio das histórias de amor

O meu tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro dos Arcos e que se apaixonou por uma antiga princesa do Cáspio, achava que o caviar era chave da antecâmara da perdi¬ção. Periodicamente, suspirava por ele. Em sua substituição recomendava ostras de Ribadeo ou amêijoas da Rias Baixas como um lenitivo para aplacar o pecado da luxúria e como um antídoto para mascarar os males de amor. A luxúria não era, aqui, um pecado carnal; estava relacionado com o transe do caviar. Ele podia recordá-lo porque o provara nas margens do Cáspio.

Percebi sempre, naqueles suspiros, o ardor de um amor que o acompanhou durante grande parte da sua vida, que o levava para longe de Portugal, que o animava a dedicar-se à literatura e à melancolia – e que, finalmente, era uma espécie de lenda romântica da família, mais do que o caviar, evidentemente. O respeito que o velho Doutor Homem, meu pai, votava às histórias de amor, era um resíduo literário, uma espécie de homenagem ao instinto de sobrevivência para lá da sua natural tendência para o cepticismo, a ironia e a falta de fé na humanidade. No fundo, ele (convertido à vida de família e à mediania de um destino sitiado pela sua profissão) acreditava que só as histórias de amor mereciam registo no almanaque das nossas vidas; no restante, ou se tratava de casos de heroísmo ou de meras tentativas de sobrevivência entre dívidas à Fazenda e o cumprimento de obrigações banais.

Ao tio Alberto, seu irmão, cabia um brilho invulgar no seu vasto registo de folhetins. Isto explica-se porque os Homem sempre apreciaram romances de aventuras, casos picarescos, histórias de bandoleiros e de heróis que, ou escapavam à “normalidade” com garbo e loucura, ou assimilavam totalmente o tom “pelintra” da sua condição. O tio Alberto representava o lado do heroísmo e da cavalaria, mais de metade do ano retido no seu refúgio minhoto, trabalhando e aguardando a oportunidade de se vingar da pequena pátria, a fim de viajar para destinos proibidos, cercados de bolchevismo, de amoralidade e de irreligião. A Tia Benedita, matriarca de Ponte de Lima, nunca aceitou essa história de amor; o mundo estava bem feito aqui, ao redor de casa, e não era preciso procurar a raiz da felicidade entre línguas estranhas. No fundo, ela fingia não compreender nem o desejo de aventura nem a possibilidade de satisfazer os sonhos mais raros. O velho Doutor Homem, meu pai, sorria: ele detectava-lhe, por detrás da veneração ao Senhor Dom Miguel, uma admiração bondosa por quem se atrevia a fazer mais do que a sua vida.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Fevereiro 2012