domingo, abril 22, 2012

O mês de Abril que não regressa


Houve um dia, creio que se tratava de uma tarde Abril, fria como as deste ano, em que percebi que tinha envelhecido sem remissão. O velho Doutor Homem, meu pai, acabara de regressar de um visita ao médico e anunciou que “precisava de fazer exames”, eufemismo para explicar que sofria de um mal crónico que haveria de o acompanhar até 1974. A doença do meu pai ajudou-o a sobreviver; Dona Ester, minha mãe, morreu antes; o seu médico, companheiro do bridge semanal, morreu antes. Ele lutou com o mal e enganou-o enquanto pôde – mas eu envelheci nesse dia e percebi que tinha chegado a um confronto decisivo com a minha idade.

Na família, por graça e por grande amor à sinceridade, sempre fui tratado como um caso especial – eu, o mais velho dos cinco irmãos, teria envelhecido demasiado cedo: vestia fato aos sábados, os meus sapatos tiveram sempre atacador, o celibato era visto como a antecâmara de uma vocação de bibliotecário discreto, mesmo a dedicação à árvore genealógica da família evidenciava um envelhecimento prematuro. Aceitei este retrato por preguiça e comodismo; para o desmentir eram necessárias explicações que eu não queria dar e que, ao longo da minha vida, guardei como um triunfo sobre a tagarelice. Paixões, devaneios de meia idade, viagens discretas, certas leituras, cartas trocadas ou nunca respondidas – tudo isso pertence à memória de cada um e, sobretudo, à sua radiografia mais íntima.

A doença do meu pai relembrou-me, cedo demais, os deveres familiares e a iminência do fim. Agora, que é Abril, relembro o poeta – “Abril é o mês mais cruel” – e relembro os livros desse tempo de iniciação ao sofrimento. Houve um tempo, depois de ter chegado à idade em que o pudor se misturava com a decência (para deixar de ser vergonha apenas), em que as lágrimas eram apenas um sinal de tristeza, de melancolia e, até, de sofrimento. Mas tanto o sofrimento como a tristeza passaram a ser um espectáculo oferecido em público, para uma audiência de espectadores convertidos à sensibilidade do choroso. Ora, as lágrimas são mais do que um sinal; elas são o fenómeno em si. Durante anos, assisti, não sem alguma indignação, à exigência de que os homens – seres graníticos ou, pelo menos, venais – chorassem com abundância para provar a sua suposta humanidade. Minha mãe, Dona Ester, não concordava. Ela achava que as lágrimas eram parágrafos num romance popular, destinado a alimentar almas que não deixavam sombra. Entretanto, envelhece-se sem remissão. E sem regresso.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Abril 2012