domingo, maio 27, 2012

Recomendações sobre o sentimento de culpa


A minha sobrinha Maria Luísa queixa-se de que os adolescentes que tem a seu cargo vivem no meio da indigência. Quer ela referir-se, vagamente, ao estado em que os seus dois filhos se apresentam à mesa e ao seu desinteresse pela ordem e pela sensatez, coisas fora de moda. Maria Luísa sente isto como o peso da sua culpa.
Há, aqui, uma novidade que atribuo à “idade sensata”: trata-se do “peso da sua culpa”, uma espécie de tábua de salvação que protegeu as gerações anteriores da catástrofe. Como se sabe, sem culpa não há civilização, coisa que surpreende tanto a minha sobrinha como a moderna “sociologia”. Ambas, de braço dado, defendem um mundo sem culpa onde sexo, virtude, maneiras à mesa e tabus venerandos são descompostos para felicidade das gerações presentes e vindouras para que todos sejam felizes e vivam em sinceridade plena e angustiante. O assunto passou-me ao lado; presentemente não me afecta nem me desilude, pelo simples facto de me restar um período de vida que pretendo dedicar a coisas simples e tão banais como a jardinagem, a leitura de inutilidades e o controlo das coronárias.

O sentimento de culpa, no fundo, transportava consigo uma dose mortal de fragilidade e humildade que nos poupava a atropelos e a desconsiderações. A minha sobrinha chama a isto hipocrisia e eu concordo. Um pouco de hipocrisia, na verdade, ajuda a manter o mundo em ordem, além de conferir um certo calor aos nossos subtis pecados, tão mais saborosos quanto mais ignorados ou praticados, com denodo ou desinteresse, em absoluto segredo.

As coisas são como são. Os meus sobrinhos-netos apenas se limitam a cumprir um programa que lhes estava destinado desde que a puericultura moderna descobriu que não deviam ser reprimidos nem limitadas as suas liberdades; o mundo corre de igual maneira e o rio Âncora não deixou de descer das montanhas entre pinhais e arvoredos anónimos. Maria Luísa, a esquerdista da família, luta com inimigos poderosos que se chamam ora “princípios ideológicos” ora “inevitabilidades do tempo”: de um lado, aquilo e que acreditou até perfazer os quarenta anos, a idade em que a razão procura alicerces para se instalar; do outro, uma comodidade perdida por causa desses princípios. Nessa luta, estive sempre em vantagem. Por ter nascido já no final da minha juventude, como dizem as minhas irmãs, fui poupado a contrariedades; vivi intensamente, mas ninguém sabe. Aprendi, com o velho Doutor Homem, meu pai, a refugiar-me nos bosques. Os prazeres da hipocrisia são suaves, sim, mas duradouros.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Maio 2012

domingo, maio 20, 2012

O reino dos telemóveis e a economia


Um dos meus irmãos (somos cinco) é astrólogo. Enverga a carteira profissional com denodo e algum desconforto há algumas décadas, provando a qualidade das palavras de Churchill, para quem a política era a arte de fazer previsões sobre “os próximos anos” e de passar “os próximos anos” a explicar por que razão as coisas não se passaram como estava previsto. O leitor já adivinhou que, por detrás do tom jocoso da primeira frase se esconde outra profissão, afinal, não menos desconfortável – a de economista.

Raul foi um dos mais virtuosos navegadores dos últimos oito quilómetros do rio Minho, tanto como um excelente herdeiro da ciência praticada durante uma vida inteira pelo nosso avô, administrador de quintas do Douro. Parte da família (onde eu me encontrava) seguiu os passos do velho Doutor Homem, meu pai, escolhendo o pachorrento caminho do Direito; outra, aconselhada pelo ruído do tempo, preferiu o ramo da administração, um pouco à maneira da última geração dos “bons homens do Porto”. Neste particular, conheço dois exemplos: o meu avô foi contemporâneo de José Domingues dos Santos e, embora estivessem em trincheiras desavindas durante a Monarquia do Norte, partilharam afazeres no Instituto Superior do Comércio no Porto – Domingues dos Santos foi um extremista da República que passou pelo exílio depois da revolução de Braga; o meu avô quedou-se pela prática da epistolografia com ingleses do vinho do Douro, a acrescentar a devaneios peripatéticos com Guerra Junqueiro nos limites de Barca d’Alva e no horizonte da Quinta da Batoca, diante dos colossos da serra do Roboredo.

No fim de semana passado, o meu irmão Raul citou um número qualquer relacionado com o decréscimo na venda de telemóveis. Isso preocupava-o já não sei a que propósito (os economistas preocupam-se até ao fim da vida); ripostei que todos os portugueses, pelo menos, já tinham telemóveis e que não podiam estar, permanentemente, a trocar de aparelho. Dona Elaine conserva um telefone que atroa os ares; eu possuo, por desfastio, um que me permite receber telefonemas e não ler mensagens; apenas os meus sobrinhos mudam periodicamente de telemóvel, procurando estar a par daquilo que suponho serem “inovações tecnológicas”. O meu irmão achava a notícia um sinal da crise – eu pensei nela como o indício de algum juízo. Mas estávamos em lugares opostos. Eu acredito que não se pode mudar de carro, de telemóvel e de máquina de aparar a relva todos os anos; ele acredita que o progresso da humanidade segue na direcção do infinito. E nisto estamos.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Maio 2012

domingo, maio 13, 2012

Lições de Economia e bom relacionamento


Desde Dâmaso de Salcede e, antes dele, uma série de outros portugueses que fizeram boa figura no regime do Constitucionalismo, que se defende a ideia de Portugal se civilizar com denodo e orgulho. Isso implicaria “uma reforma profunda das mentalidades” para que se procedesse à nossa equiparação a países onde não faltam nem a ópera de outrora nem os clubes de cosmopolitas ricos. Em relação a este projecto, o velho Doutor Homem, meu pai, era um céptico insensato e teimoso. Em primeiro lugar, não acreditava numa “reforma das mentalidades”, que lhe parecia um atrevimento de pessoas que não conheciam a sua terra mas estavam desejosas de mudá-la de latitude; depois, achava que o país estava moldado quer à sua pequenez, quer à sua abundância de inveja. Isto explica muito do conservadorismo congénito de uma família que não apreciava exageradamente as mudanças, a que atribuía a maior parte dos incómodos que o género humano atravessa.

Para se fazerem “reformas” são necessários fundos estimáveis – e os ricos portugueses são, geralmente, apegados aos seus cabedais, pela simples razão de serem desconfiados em relação ao Estado e em relação aos seus concidadãos. Sem confiança, como se sabe, não se abrem os cordões à bolsa; o mesmo se passa com um Estado depauperado que passa metade do seu tempo inútil em busca de artimanhas para “cobrar o imposto”, mesmo se ele for injusto.

Grande parte das boas mudanças que houve em Portugal foi realizada apesar do cepticismo de famílias como a nossa. Nós não somos exemplo para quase ninguém: habituámo-nos a café de cevada e a sobremesas austeras; continuamos a mandar o nosso calçado ao sapateiro a fim de aplicar meias-solas; servimos vinho do Porto no fim das refeições principais, mas em cálices que economizam o ‘tawny’ (que é bom e ainda recorda o meu avô, administrador de quintas do Douro); os meus fatos foram feitos de encomenda há vinte anos e admitem trabalhos de restauro quando é necessário; conserva-se na garagem um velho Volvo que já não sabe contar quilómetros pelas modernas autoestradas do Minho; a caneta com que escrevo estas crónicas é uma velha Parker, vetusta e alimentada com tinta que vem semestralmente da mesma papelaria de Caminha; a conta da mercearia é paga com regularidade mensal e Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, não comete exageros. Não contribuímos, portanto, para o crescimento da economia. Mas, seguindo uma orientação antiga que vigorou entre os Homem desde há séculos, também não pedimos grande coisa em troca. É esse o segredo.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Maio 2012

domingo, maio 06, 2012

Uma recompensa contra o tempo


O velho Doutor Homem, meu pai, sempre considerou que o seu papel de ‘pater familias’ não o transformava nem num patriarca a venerar nem num aposentado a cuidar. Creio, hoje, que suportou com abnegação esse papel e cumpriu as obrigações que figuravam numa espécie de código invisível herdado dos seus maiores – providenciar refeições, médico, “férias grandes” e, certamente, uma biblioteca aos descendentes; o resto não era assunto seu. Os seus cinco filhos sobreviveriam com saúde a este desinteresse geral e magnânimo, acrescentado ao rigor de Dona Ester, minha mãe: frequentaram a universidade, malbarataram talento e oportunidades, festejaram a passagem à idade adulta – enfim, cresceram. A partir daí, sentavam-se à mesa e discutiam assuntos correntes.

Ao aproximar-se o final dos anos cinquenta e verificada a relativa independência dos filhos, o velho Doutor Homem, meu pai, concluiu que o seu destino estava cumprido e que, finalmente, poderia dedicar-se com alguma largueza a satisfazer um ou outro desígnio da idade adulta. Tendo percorrido mais de metade da sua vida sem registar cataclismos ou grandes convulsões, é de supor que tivesse, como Samuel Johnson, realizado “a sua viagem às Hébridas” – mas solitária, sem confidentes (tirando talvez o seu irmão Alberto) nem conselheiros. Contabilizando danos e vantagens, concluiu que tinha alguns anos felizes à sua frente e que devia aproveitá-los.

Os caprichos do velho Doutor Homem, meu pai, incluíam a aquisição de um Triumph TR3, verde e, com toda a certeza, inadequado para a sua idade e para as estradas do Minho. Este projecto acompanhou-o durante muito tempo como uma espécie de vingança sem ressentimento contra os anos de contenção e de economias, ou como uma compensação por ter cumprido os deveres de um pai de família tranquilo e discreto. Tamanha sensatez merecia essa recompensa.
Dona Ester, minha mãe, ainda sugeriu que um automóvel daqueles, de dois lugares, não era, decerto, um emblema para uma família vasta e barulhenta. Em vão. A família podia desenvencilhar-se sem ele; um pouco de egoísmo e uma dose inesperada de loucura já tinham feito o seu trabalho e aberto as estradas imaginárias por onde o automóvel iria deslizar, rasando precipícios e flutuando em declives de arvoredos. Ao fim de um ano de espera, o velho Doutor Homem, meu pai, cumpriu finalmente um dos sonhos da sua vida. À porta do casarão de Ponte de Lima, a Tia Benedita, longe de achar a ideia estapafúrdia, lembrou que o senhor Dom Miguel, “ai dele”, também gostava de cavalos. 

in Domingo - Correio da Manhã - 6 de Maio 2012