domingo, junho 24, 2012

A História não tem compaixão


Quando a minha sobrinha Maria Luísa me pergunta se eu acho justas "as medidas de austeridade", começo por lembrar que, tirando os tempos em que os optimistas ou os esbanjadores (a classificação diverge pouco) estiveram no governo, houve sempre "medidas de austeridade". O velho Doutor Homem, meu pai, sabia que não se podia governar um país como o dr. Salazar pretendia governar a sua casa, mas acreditava que, como especialista em direito bancário, existiam fundamentalmente duas operações contabilísticas que o pudor me manda escrever em minúsculas: o "deve" e o "haver".
Este princípio, tão conservador como qualquer outro facto irremediável, transitava de governo para governo e de regime para regime independentemente da vontade do governo e dos regimes. Durante séculos a nossa Fazenda tratou de pagar os luxos de outrora, tanto a embaixada do rei D. Manuel I ao Papa como os sinos de Mafra encomendados por um capricho de D. João VI. No tempo dos impérios, o ouro e os impostos permitiam o desvario.
Isabelle, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro (ela, vinda da Frísia natal, inaugurou a temporada balnear de Moledo no domingo passado), acha isto uma condenação; lembro-lhe o caso holandês, quando a Companhia mandou que Maurício de Nassau regressasse a Haia porque os negócios do Pernambuco, no século XVII, estavam a dar prejuízo. "Isso são os holandeses", murmurou Maria Luísa, que mantém uma desconfiança perpétua acerca do capitalismo e das intenções dos calvinistas. Tem alguma razão. Os holandeses conheciam a condenação das duas operações contabilísticas básicas, o "deve" e o "haver". Portugal não a entendeu com toda a gravidade e ao longo da história não só gastou mais do que podia como, além disso, esbanjou a glória de o ter feito.
A memória é curta e alguns anos de optimismo político fizeram--nos esquecer que havia contas a pagar. Portugueses de antanho interrogavam-se sobre tamanha fortuna gasta tão rapidamente e sobre quem iria pagar a factura de tão boas estradas a atravessar a Serra de Arga. Europeus de antigamente, obrigados a contar as moedas durante o período do pós-guerra, foram substituídos por europeus que nasceram com férias pagas e confiança absoluta no futuro.
Há, claro, uma sensação de injustiça a pairar na atmosfera. Os humildes pagarão sempre a factura que os poderosos deixaram para a posteridade. Portugal viveu nesse regime durante mais de seiscentos anos (o leitor que imagine as excepções), entre austeridade e esbanjamento. O resultado é este, e não nos honra.
in Domingo - Correio da Manhã - 24 Junho 2012

domingo, junho 17, 2012

As glórias do passado e os postais ilustrados


Verifico postais ilustrados de antigamente. É costume, nestes momentos, observar como o mundo mudou nos últimos cinquenta anos, nos derradeiros sessenta, no século que abandonámos. Há esquinas de uma praça que já desapareceu, árvores que sucumbiram ao tempo, ruas que foram substituídas por avenidas onde prédios modernos foram erguidos para eliminar casarões que se foram transformando em ruínas – e seria aceitável que um velho minhoto, quase contemporâneo do ‘Titanic’, lamentasse essa transformação. Porém, a experiência e o contacto com o género humano temperaram esse saudosismo; a par disso, que já não é pouco, seria impossível imaginar que o mundo não iria transformar-se e erguer as suas fachadas sobre os escombros de outros séculos.

A questão está em saber se as coisas ficaram melhor ou pior; “ordinariamente ficam pior”, como lamentava um dos mais melancólicos personagens de ‘Os Maias’, mas é preciso fazer justiça aos vindouros da época em que a idade madura começou a colar-se a nós como uma doença e uma ameaça: eles acreditavam que havia um papel para cumprirem no futuro, uma arquitectura para substituir os desenhos de Raul Lino, ou novidades que cumprissem objectivos e sonhos reais.

Por mim, contentei-me com o desenho das florestas e, mesmo essas, sucumbiram com incêndios ou casario polvilhado nas encostas do meu velho Minho. Quando o Verão se aproxima e enxameia de juventude o eremitério de Moledo, limito-me, como o velho Doutor Homem, meu pai, a considerar que as pessoas fazem escolhas e que há-de haver uma solução para a tristeza periódica dos portugueses. A minha sobrinha Maria Luísa enternece-se e, para me contentar, promete que o futuro trará surpresas felizes; o esforço é notório e fico grato como um paciente a quem o médico acena com a ablação de um vírus.

Ontem, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, chegou dos seus laboratórios (é bióloga) e visitou-me para saber da saúde do mais velho representante dos resistentes de Itamaracá, no Pernambuco. Sou eu. Ela supõe que todos os portugueses colaboraram para expulsar os holandeses do Forte de Orange depois da batalha dos Guararapes e da saída ordeira do príncipe Maurício de Nassau. Já lhe expliquei que do nosso patriotismo apenas restam o futebol e as colecções de postais ilustrados. E as comparações não são ilustres nem lisonjeiras. O futebol deixa a pátria com febres terçãs; os postais antigos deixam-na deprimida e saudosa. Não sei o que é pior.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Junho 2012

domingo, junho 10, 2012

Sobre o poder e quem chega lá



Uma família conservadora e tradicional: foi isso que sempre fomos, em maior ou menor grau. Nunca recebemos comendas nem favores; habituámo-nos a viver conforme as obrigações do destino, o que resultou numa obra ligeiramente cómica, com tanto de burlesco como de – por vezes – inexplicável. Advirto em várias ocasiões que “uma família conservadora” não era uma delegação do dr. Salazar entre o Porto e o Minho, suportada por regedores que tocavam concertina nas festividades de Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, declarara o lente de Coimbra insuportável como pessoa e, depois da guerra, permeável à corrupção e à inabilidade, rodeado do seu séquito de militares e damas de companhia; mais tarde, culpou-o de coisas inadmissíveis e, durante algum tempo, julguei tratar-se de uma obsessão pessoal. Não era. Simplesmente, julgava-se uma espécie de cavalheiro rural inglês, dotado de uma biblioteca e de um casarão entre carvalhos frondosos, incompatível com um primeiro-ministro que se acreditava ungido de capacidades largamente visionárias acerca dos destinos dos seus concidadãos.

Tenho podido explicar às gerações mais recentes da família, em ocasiões nem sempre apropriadas (ou depois do pequeno-almoço de sábado ou em caminhadas pelos pinhais dos arredores), que esta posição sobre o modo como aceitamos ou não aceitamos a presciência de um governo é puramente conservadora. E que um conservador não compreende uma sociedade cercada de regras, impostos, deveres, polícias do espírito e do corpo, operações de vigilância que se confundem com armadilhas aos cidadãos. Esse retrato convém muito às democracias de hoje em dia, que acreditam num povo virtual e escondido em suas casas. Mas é um risco incalculável. Porque uma sociedade sem “zonas de respiração”, sem fendas nas muralhas que a cercam, sem possibilidade de divergir ou de encontrar atalhos, corre o risco de sufocar a todo o momento. A coberto de um mais rigoroso controle fiscal, sanitário e político, o nosso país sofre uma intrusão que, daqui a uns tempos, as pessoas considerarão inadmissível. Ao contrário dos políticos de hoje, que se consideram arquitectos de uma sociedade a caminho da perfeição e civilizadores dos vetustos sertões lusitanos, o velho Doutor Homem, meu pai, acreditava mais na organização espontânea das pessoas, uma resposta admirável do género humano em todas as circunstâncias e diante de todas as dificuldades. Ele não era um mestre de ciência política, mas conhecia o desvario dos homens mal chegavam ao poder – e temia-o com razão.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Junho 2012

domingo, junho 03, 2012

A preparação das férias grandes


Nada há de tão comovente como o final do mês de Maio: Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, inicia aquilo que ela chama “a instalação das tropas”, o que significa a preparação da casa para a campanha de Verão, período durante o qual parte da família pretende exercer sobre Moledo aquilo que as tropas do general Massena julgavam poder cumprir em solo português para glória de Napoleão. A diferença abissal entre uma e outra ocupação é que Moledo aceita de bom grado o invasor, até para compensar nove a dez meses de isolamento e de boa solidão: Julho e Agosto são o território das chamadas ‘férias grandes’, designação hoje fora de moda mas que evoca esse tempo em que ‘a crise económica’ e os deveres do trabalho não implicavam sacrifícios tão notórios.

Sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, convidados ocasionais – eles invadem Moledo para contentamento da memória. Isto acontece com mais intensidade, digamos, desde que os meus irmãos e irmãs descobriram que as águas frias do mar do Minho são um incómodo para o Verão; desde o início da década de noventa, quando Portugal enriqueceu com dinheiro que não nos pertencia, que parte da família se transformou em turistas estivais, procurando as Caraíbas, o Brasil ou outras paragens de catálogo. Moledo assistiu, nessa altura, a uma debandada das suas clientelas tradicionais, que achavam desmiolada a ideia de avançar para o areal diante da Ínsua munidas de camisola e abafo de lã. Expliquei, com alguma demora e mais convicção, que as “águas frias” eram um expoente da civilização, boas para saúde e disciplinadoras para a fraqueza do espírito. Em vão: depois do Algarve, os portugueses descobriram “o estrangeiro” e os hotéis com ‘spas’, para onde partiam em busca de repouso e de novidade e de onde não traziam nem uma coisa nem outra.
Os que ficavam, resistentes inamovíveis, eram a alma do lugar; havia neles, e há ainda, uma certa religiosidade mitigada pela exposição solar e pela abundância de biquínis. Tirando a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro (a nossa simpática bióloga da Frísia), que acha a água de Moledo um expoente dos trópicos, o resto da família manteve o seu período no mar minhoto como uma espécie de teimosia contra os elementos e as modas passageiras, decretando que o bronzeado local tinha uma classe que não se detectava noutras paragens.

Dona Elaine aguarda a turba. A minha sobrinha Maria Luísa começa a transferir-se, aos poucos, para um Verão que se aproxima a passos lentos. Eu assisto, enlevado, à repetição do ritual. Sou um conservador.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Junho 2012