domingo, junho 03, 2012

A preparação das férias grandes


Nada há de tão comovente como o final do mês de Maio: Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, inicia aquilo que ela chama “a instalação das tropas”, o que significa a preparação da casa para a campanha de Verão, período durante o qual parte da família pretende exercer sobre Moledo aquilo que as tropas do general Massena julgavam poder cumprir em solo português para glória de Napoleão. A diferença abissal entre uma e outra ocupação é que Moledo aceita de bom grado o invasor, até para compensar nove a dez meses de isolamento e de boa solidão: Julho e Agosto são o território das chamadas ‘férias grandes’, designação hoje fora de moda mas que evoca esse tempo em que ‘a crise económica’ e os deveres do trabalho não implicavam sacrifícios tão notórios.

Sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, convidados ocasionais – eles invadem Moledo para contentamento da memória. Isto acontece com mais intensidade, digamos, desde que os meus irmãos e irmãs descobriram que as águas frias do mar do Minho são um incómodo para o Verão; desde o início da década de noventa, quando Portugal enriqueceu com dinheiro que não nos pertencia, que parte da família se transformou em turistas estivais, procurando as Caraíbas, o Brasil ou outras paragens de catálogo. Moledo assistiu, nessa altura, a uma debandada das suas clientelas tradicionais, que achavam desmiolada a ideia de avançar para o areal diante da Ínsua munidas de camisola e abafo de lã. Expliquei, com alguma demora e mais convicção, que as “águas frias” eram um expoente da civilização, boas para saúde e disciplinadoras para a fraqueza do espírito. Em vão: depois do Algarve, os portugueses descobriram “o estrangeiro” e os hotéis com ‘spas’, para onde partiam em busca de repouso e de novidade e de onde não traziam nem uma coisa nem outra.
Os que ficavam, resistentes inamovíveis, eram a alma do lugar; havia neles, e há ainda, uma certa religiosidade mitigada pela exposição solar e pela abundância de biquínis. Tirando a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro (a nossa simpática bióloga da Frísia), que acha a água de Moledo um expoente dos trópicos, o resto da família manteve o seu período no mar minhoto como uma espécie de teimosia contra os elementos e as modas passageiras, decretando que o bronzeado local tinha uma classe que não se detectava noutras paragens.

Dona Elaine aguarda a turba. A minha sobrinha Maria Luísa começa a transferir-se, aos poucos, para um Verão que se aproxima a passos lentos. Eu assisto, enlevado, à repetição do ritual. Sou um conservador.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Junho 2012